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Da Redação
Publicado em 19 de setembro de 2013 às 07h30.
Rio de Janeiro – O grupo de trabalho da Comissão Nacional da Verdade dedicado a apurar a atuação das igrejas cristãs durante a ditadura militar (1964-1985) poderá convocar a depor religiosos que de alguma forma apoiaram a repressão.
O coordenador do grupo, o ex-preso político metodista Anivaldo Padilha, informou que está sendo apurada a atuação, por exemplo, dos capelães militares, ministros autorizados por padres ou pastores a fazer celebrações e prestar assistência em quartéis.
"A medida que nós conseguirmos identificar pessoas das igrejas que tiveram uma ligação direta com a repressão, nós vamos chamá-las para depor. Um exemplo de algo que estamos investigando é o papel dos capelães militares.
Sabemos que eles acompanharam e estavam lá nos quartéis do DOI-Codi [Destacamento de Operações de Informações-Centro de Defesa Interna]. Certamente tinham informação sobre o que ocorria nos porões da ditadura, e alguns deles chegaram a acompanhar presos políticos".
Segundo Padilha, a falta de documentação sobre os encontros desses religiosos com os presos é um dos principais obstáculos. "É uma informação que não é registrada em nenhum documento. Não tem um que diz que o capelão fulano de tal esteve presente com o preso fulano de tal. Tem que ser por meio dos depoimentos dos presos que podemos identificá-los".
O grupo de trabalho ouviu na manhã de hoje (18) mais dois depoimentos sobre a atuação das igrejas durante a ditadura. "Os depoimentos confirmaram a visão que nós já temos no grupo sobre o papel das igrejas, que foi um papel contraditório.
Tivemos setores que participaram ativamente na criação do clima que possibilitou o golpe e apoiaram a ditadura, foram coniventes e negligentes em relação às graves violações dos direitos humanos. E, ao mesmo tempo, tivemos setores que resistiram bravamente. Temos pessoas ligadas diretamente às igrejas que estão entre os mortos e desaparecidos".
As testemunhas foram ouvidas na Caixa de Assistência dos Advogados do Estado do Rio de Janeiro (Caarj), sede da Comissão da Verdade do Rio.
A primeira a depor foi a historiadora Jessie Jane, que passou nove anos presa (de 1970 a 1979) por ter participado de uma tentativa de sequestro a um avião, quando tinha 20 anos. Ela relatou ter sofrido agressão psicológica, física e sexual e que contou com a ajuda do então bispo de Volta Redonda, dom Waldyr Calheiros, para conseguir casa e trabalho quando deixou a prisão.
"Quando nos libertaram, ele nos levou para Volta Redonda, alugou uma casa para nós e nos conseguiu um projeto de boletim diocesano para trabalhar. Eu fui presa muito nova e não tinha profissão nem faculdade ainda".
Jessie foi presa junto com o marido, Colombo Vieira, e os dois ficaram anos separados até conseguirem direito a se encontrar, ainda presos, em 1976. No encontro, ela engravidou da primeira filha, que foi criada pela família do marido até que eles fossem libertados.
Outro nome lembrado pela historiadora, especialista na relação da Igreja com a ditadura, foi o padre italiano Renzo Rossi, que se envolveu com os movimentos de resistência depois de conhecer a situação dos presos ao visitar um membro de sua paróquia que havia sido detido. Rossi visitou todos os presídios políticos do país, participou da articulação de greves de fome e teria ajudado na fuga de um preso político.
Enquanto Jessie estava presa, sua família foi perseguida por motivos políticos. Sua mãe e irmãos conseguiram fugir para a Bolívia pelo Acre com apoio de dom Ivo Lorscheiter e dom Aloísio Lorscheider, primos e membros da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
A família chegou a se abrigar em um convento dominicano, porém não encontrou ajuda em outra igreja. "O padre disse a ela: 'Você tem dois minutos para ir embora daqui antes que eu chame a polícia'", contou.
O segundo a depor foi o padre Geraldo Lima, que destacou a luta da diocese de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, contra a ditadura. Geraldo lembrou a atuação do bispo Adriano Hipólito, que abrigou fugitivos políticos, organizou passeatas pela anistia e sofreu agressões físicas.
Dom Adriano foi sequestrado e torturado pelos militares, sendo abandonado nu e com o corpo pintado de vermelho em uma estrada, com os pés e as mãos amarradas.
"Em vez de se acovardar, ele criou a Comissão de Justiça e Paz na diocese e mobilizou a população. Quando foi sequestrado, foi ao Sumaré e deu uma entrevista ao lado do arcebispo do Rio, dom Eugênio Sales", contou Geraldo.
O carro do sacerdote católico foi roubado e usado como carro-bomba em frente à sede da CNBB, e uma bomba foi implantada na sacristia da Catedral de Nova Iguaçu, destruindo o sacrário (pequeno cofre colocado sobre o altar). Em protesto, todas as igrejas da diocese foram fechadas em um domingo, e uma faixa foi fixada com a frase: "Aqui Cristo foi crucificado pela segunda vez".