Ocupação Douglas Rodrigues: nome da ocupação é uma homenagem a um estudante de 17 anos morto por um policial militar que patrulhava a região, em outubro de 2013 (Divulgação)
Da Redação
Publicado em 8 de setembro de 2015 às 10h05.
Com 2.620 barracos, a ocupação Douglas Rodrigues sobrevive em uma privilegiada localização na capital paulista, de frente para a Marginal Tietê e próxima à Rodovia Presidente Dutra.
Os moradores se beneficiam da estrutura da região norte da cidade, como shopping, centro comercial, rodoviária, escolas e postos de saúde.
O nome da ocupação é uma homenagem a um estudante de 17 anos morto por um policial militar que patrulhava a região, em outubro de 2013.
Ao passar pelos portões de entrada – a comunidade é cercada por muros –, barracos de madeira e alvenaria, de até dois andares, pequenas vielas, chão de terra batida, esgoto a céu aberto, cachorros e crianças compõem o cenário. O tamanho impressiona.
Toda eletricidade e a água da ocupação vêm de ligações clandestinas. A ocupação se formou há exatos dois anos, em agosto de 2013.
As primeiras famílias a chegarem ao terreno de 50 mil metros quadrados tiveram de enfrentar o mato alto, os animais peçonhentos, como cobra e escorpião, além de “remover” uma “lagoa” que se formou ali, já que o terreno era leito do Rio Tietê.
No Movimento Independente de Moradia de Luta por Habitação da Vila Maria, 14 pessoas coordenam e tentam manter a ordem entre os mais de 8 mil moradores.
Um dos coordenadores José Miguel da Silva, 59 anos, diz qual a regra mais importante dessa pequena cidade: é proibido construir barraco para depois vender.
Os líderes da comunidade tentam conter também a chegada de aproveitadores, como donos de lojas de materiais de construção, que tentam fazer da ocupação depósito para guardar tijolos, telhas, cimento.
“O espaço aqui é para moradia, para quem está precisando”, diz José Miguel. Apenas pequenos comércios como mercadinho, quitanda, salão de cabeleireiro, padaria e lanchonete são permitidos.
Dívida bilionária
A aparente tranquilidade na comunidade esconde o temor das famílias de, a qualquer momento, terem de deixar suas casas. A 1ª Vara Civil do Fórum de Tatuapé havia determinado a reintegração de posse do local para 9 de setembro.
Na última sexta-feira (4), entretanto, o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, José Reinaldo Nalini, adiou a retirada dos moradores, acatando um pedido da prefeitura, com apoio da Secretaria de Segurança Pública do estado e do Ministério Público.
Por questões de segurança, a prefeitura solicitou que o caso seja analisado pelo Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (Gaorp) antes do cumprimento da retirada dos ocupantes.
Uma ação de reintegração de posse ofereceria riscos à população e grandes prejuízos à cidade, já que parte da Marginal Tietê precisaria ser interditada.
O Gaorp, órgão coordenado pelo Tribunal de Justiça, foi criado no ano passado, após violenta reintegração de posse na Avenida São João.
Com representantes das três esferas públicas (municipal, estadual e federal), o grupo busca a conciliação e a resolução pacífica de conflitos fundiários.
Essa foi a quinta vez que os moradores sofreram ameaça de despejo.
Antes de servir de morada às 2.620 famílias, o local funcionou como depósito da transportadora de caminhões Dom Vital. Os antigos galpões, abandonados há mais de 20 anos, ainda existem e hoje foram transformados em uma imensa residência coletiva.
Cada família se organiza como pode, instalando tapumes que servem de divisória para dar mais privacidade.
Proprietária do terreno, a Ideal Empreendimentos S/A, pertencente ao Grupo Tenório, tem dívida estimada em mais de R$ 1 bilhão em impostos com a União, segundo ofício da Procuradoria-Geral da Fazenda obtido pela reportagem da Agência Brasil.
De acordo com o documento, a Receita Federal identificou a criação, pelo grupo, de inúmeras empresas de fachada com o intuito de deslocar o capital sem ligá-lo aos passivos tributários.
Para garantir o pagamento de parte da dívida bilionária, a Fazenda Nacional obteve a penhora e o bloqueio da matrícula do imóvel, registrado no 17º Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo. Para os procuradores da Fazenda, o custo social de uma reintegração é “desnecessário e demasiadamente alto”.
“Haverá o desalojamento traumático de grande número de pessoas, dentre elas mais de 4 mil crianças e jovens”, diz o documento.
Para a defensora pública do Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo, Luiza Lins Veloso, que acompanha o caso, a reintegração de posse também não seria vantajosa para o proprietário, já que ele teria de arcar com os custos dos caminhões e dos ajudantes para fazer a retirada dos pertences das famílias. “Tudo isso com o imóvel penhorado, que será entregue à União”, explica.
A defensora defende o deslocamento de competência do caso. Na avaliação dela, no momento em que a União demonstra interesse no processo, o julgamento deve ser feito pela Justiça Federal.
Apesar do adiamento da reintegração de posse, o processo continua na Justiça Estadual, e os moradores ainda correm risco de serem removidos.
“A ideia é que o imóvel passe para o patrimônio da União e que não haja reintegração de imediato. Haveria uma tentativa de encaminhamento [do imóvel] para as famílias. Não precisaria da execução da ordem”, disse a defensora.
A reportagem conversou com a advogada Maria Rafaela Guedes Pedroso Porto que representa a Ideal Empreendimentos. Ela afirma que as dívidas e o possível penhor da área são questões alheias ao pedido de reintegração de posse.
No mês passado, a prefeitura deu um passo importante em favor dos moradores, ao publicar, no dia 4 de agosto, o Decreto de Interesse Social, que pode resultar na desapropriação da área para habitação social.
O local está inserido na Zona Especial de Interesse Social - 2, o que significa que a região tem potencial para construção de moradias populares. Os moradores defendem que o local seja transformado em um empreendimento do Minha Casa, Minha Vida 3.
Região de conflitos
A ocupação se localiza no centro de uma região de intensos conflitos sociais. A morte do estudante Douglas Rodrigues, de 17 anos, em 2013, ganhou grande repercussão depois de testemunhas terem contado que, durante a abordagem, o policial militar não saiu do carro e que o jovem não esboçou reação.
Ainda segundo testemunhas, ele apenas perguntou, logo depois de ser atingido: “Por que o senhor atirou em mim?
“Existe muita tensão com a polícia, que também está preocupada. Aquela é uma região de periferia muito pobre”, diz o advogado Benedito Roberto Barbosa, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos.
Moradores das favelas Marconi, Funerária e Berimbau, nas proximidades, garantem que vão se unir às famílias da ocupação Douglas Rodrigues para resistir à reintegração de posse.
A dificuldade de se relacionar com a vizinhança de classe média - há diversos prédios na mesma rua da comunidade - intensifica o clima de tensão. “Eles vivem nos filmando, tentando pegar algum ato irregular. Eles fizeram abaixo-assinado para nos tirar daqui”, conta Miguel.
A reportagem da Agência Brasil conversou com alguns desses vizinhos, que pediram para não ser identificados. Eles dizem que, após a criação da comunidade, o índice de assaltos na Rua Manguari, onde está localizada uma das entradas da ocupação, aumentou.
Eles confirmam as filmagens com o objetivo de registrar atos irregulares, como a venda e o consumo de drogas na comunidade, e dizem que estão em contato permanente com o 5º Batalhão da Polícia Militar.
Eles também confirmam a organização de um o abaixo-assinado que pede a remoção da ocupação.
Relatos de esperança
Apesar de toda a dificuldade e insegurança de viver em uma ocupação, os moradores mantêm firme a esperança de continuarem na comunidade. Para Queiciane Iraci, 21 anos, morar na Douglas Rodrigues significa a única chance de recuperação do seu filho Gabriel, 4 anos, que sofre de malformação na válvula direita do coração.
Mãe e filho vieram da Paraíba, onde não havia estrutura nas redes hospitalares. “Eu morava em São Paulo numa casa de aluguel, pagava R$ 600 por mês. Mas fiquei sem dinheiro. Ou pagava o aluguel ou passava fome”, conta.
A malformação no coração do pequeno Gabriel deixou sequelas que o fazem ter problemas neurológicos e paralisia em todo o lado direito do corpo.
Ele também não desenvolveu a fala. Em São Paulo, Gabriel tem acompanhamento médico gratuito do InCor, hospital de excelência, do Hospital do Mandaqui e faz sessões de fisioterapia e de fonoaudiologia na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD).
“Meus sonhos? Primeiro é que meu filho ande, depois é ter a minha casa. Futuramente, eu quero trabalhar para comprar as coisas para o meu filho, ele tem pouca roupa. E colocar ele na escola, para que seja um homem trabalhador”, diz Queiciane.
Dona de uma pequena quitanda na ocupação, Josefa Quitéria da Conceição, 52 anos, lucra R$ 300 por mês com a venda de frutas, verduras e legumes. Ela diz ser suficiente para pagar arcar com as contas já que não paga aluguel.
“Hoje em dia eu como filé-mignon. É de porco, mas já está bom, né? Morar aqui é uma delícia. Quem mora de aluguel, tem que pagar prestação, água e luz. E tem o 'se'. Se sobrar, você come”, diz.
Com 17 anos, João Paulo Silva Soares é quem leva dinheiro para casa. A responsabilidade chegou quando, há dois anos, seu pai foi preso por roubo de carga e um dos seus irmãos, por homicídio.
Ele tem mais dois irmãos condenados por tráfico de drogas. João agora sustenta a mãe com o dinheiro recebido do trabalho em um lava rápido, onde ganha R$ 35 por dia.
“Meu sonho é arranjar um serviço bom, registrado. Ter meu carro, minha moto. Mas a primeira coisa vai ser ajudar a minha mãe, depois eu penso em mim”, diz. João quer também, um dia, voltar a estudar.