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Ceará errou declarando fim da divisão de prisão por facção, diz sociólogo

"Concordo também, mas não deveria haver esse alardeamento", diz o coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Federal do Ceará, César Barreira

Pixação em referência ao atual secretário de Segurança Pública, Mauro Albuquerque (Paulo Whitaker/Reuters)

Pixação em referência ao atual secretário de Segurança Pública, Mauro Albuquerque (Paulo Whitaker/Reuters)

EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 7 de janeiro de 2019 às 20h13.

Última atualização em 8 de janeiro de 2019 às 16h47.

No sexto dia de ataques no Ceará, ao menos 36 municípios de todas as regiões do Estado registraram ataques em órgãos públicos e privados. Em Fortaleza, 33 bairros sofreram com os atos.

Os ataques, que teriam sido comandados de dentro dos presídios cearenses, atingiram principalmente veículos de transporte público, vans, prédios, fotossensores, lojas, unidades da Polícia Militar, uma passarela e até um viaduto.

Os ataques aconteceram um dia após o titular da recém-criada Secretaria da Administração Penitenciária, Luís Mauro Albuquerque, ter dito que não reconhecia facções no Estado e que não separaria mais os presos segundo a ligação com essas organizações.

Nas redes sociais, o governador do Ceará Camilo Santana (PT) afirmou neste sábado, 5, que vai "endurecer" ainda mais contra o crime.

"Esse tem sido justamente o motivo desses atos criminosos: fazer com que o Estado recue dessas medidas fortes, o que não há nenhuma possibilidade de acontecer". E continuou: "Endureceremos cada vez mais contra o crime".

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o sociólogo e coordenador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), da Universidade Federal do Ceará (UFC), César Barreira, defende o endurecimento das medidas no sistema penitenciário (proibição de celulares, transferência de líderes de grupos do crime organizado e fim da separação das facções por presídios).

Barreira condena, no entanto, a postura "de confronto" que vem sendo adotada pelo governo estadual. "Temos que tomar muito cuidado com essa questão de confronto. Não é que temos de deixar de tomas posições. O governo tem de tomar posição porque é avaliado pela manutenção de paz e segurança. Mas essas são frases de confronto e sou contra essa postura porque acirra os ânimos", afirma o especialista.

Apesar da ressalva, o sociólogo diz também que o governo não deve ficar "à mercê do crime organizado".

A fala do secretário de Administração Penitenciária Luís Mauro Albuquerque (ao dizer que não reconhece facções criminosas e ao prometer acabar com a divisão de facções por presídios) foi a única razão para explicar a onda de ataques violentos no Ceará?

É claro que é acoplado a outras questões. A fala dele detonou uma situação que de certa forma já vinha sendo anunciada. O problema começou antes. As redes sociais já vinham anunciando uma certa indisposição ao nome dele na secretaria.

Quando surgiu o nome dele para secretário de Administração Penal, já começou a circular nas redes sociais uma questão muito contrária a ele, principalmente pelas facções, denunciando comportamento de tortura que ele teria tido no Rio Grande do Norte (Mauro foi secretário da Justiça entre maio de 2017 e dezembro de 2018).

Não é que o governo teria de levar em consideração essa indisposição, mas já estava sendo verbalizada essa indisposição em função da prática autoritária que ele teria utilizado, sem entrar no mérito desse comportamento, no Rio Grande do Norte. Portanto, já havia um clima adverso a ele.

Quando ele assume e faz essas colocações, acirrou ainda mais os ânimos. De certa forma, essa reação das facções decorre e muito dessa postura do secretário. Para mim, não deveria ter havido esse pronunciamento do secretário. Essas medidas de endurecimento que ele está apontando eu concordo também, mas não deveria haver esse alardeamento das possíveis posições que ele iria tomar.

O sr. acha que o secretário errou ao falar que não reconhece as facções criminosas e que não haverá divisão por facção nos presídios do Estado?

Acho que é uma medida correta que pode ser tomada, mas não precisaria já ter sido anunciado. O Ceará vive uma situação que se diferencia de outros estados. Mesmo assim, encontra outros estados que têm as mesmas características, uma delas é a de ter diversas facções.

Temos aqui no Ceará a atuação de várias facções e, principalmente, do Comando Vermelho e dos Guardiões do Estado (GDE). A existência dessas facções já leva um clima de instabilidade muito grande. Estavam sendo feitas essas divisões dos presídios a partir das facções e isso era também ponderado pela ex-secretária de Justiça (Socorro França), então responsável pelo sistema penitenciário, que anunciava que se não fosse feita essa divisão haveria uma carnificina diária nos presídios. Tudo isso deixava um nível de estabilidade muito grande.

Quando o novo secretário assume, com uma das medidas de que não vai levar em consideração essa situação de divisão, ele já entra nessa disputa, no confronto. A segunda questão é a proibição de celulares, que também é correta, mas ele já anuncia de antemão. E a terceira é a transferência de líderes dos grupos criminosos. Esses três elementos acirraram muitos os ânimos.

A divisão por facções nos presídios deve ser mantida?

Sou contra a divisão por facções nos presídios. Mas é a medida possível na situação em que nos encontramos. Quando se fala da questão da possibilidade de carnificina, é um dado correto. Se estamos querendo preservar vidas, devemos levar em consideração esse dado. Mas deveriam ser tomadas medidas anteriores a isso, como o enfraquecimento das facções.

Não é uma situação fácil para o governo do Estado. É muito delicada. Estou defendendo muito a questão do planejamento. E também o uso de inteligência. Cada vez mais é necessário o uso da inteligência para que possamos conhecer cada vez mais as facções e atuar a partir dessa orientação. Também é possível aproveitar os estudos que já estão sendo feitos.

Em pouco mais de 48 horas, Fortaleza e mais 13 cidades foram alvo de ataques. O que explica uma mobilização tão rápida, violenta e capilarizada?

Não foi nem espontânea, nem no calor da hora. Estava havendo um planejamento. Este é um dado que nós, estudiosos, não podemos afirmar, mas algumas pessoas já estão fazendo referência à existência de milícias no Estado em função do grau de violência com que foram feitos esses ataques. Não posso confirmar.

Mas essa sua pergunta é uma pergunta sem resposta. Toda essa desenvoltura dos ataques demonstra um nível de organização muito forte, essa capacidade não só de trabalhar com diferentes ataques em Fortaleza, mas de promover um deslocamento para o interior na hora em que a capital começa a ser mais policiada. A própria ação de ataque ao viaduto é um exemplo.

É interessante porque ao mesmo tempo em que acho que demonstra planejamento e certa organização, às vezes também pode demonstrar uma certa desorganização. Por exemplo, o fato de explodir um banco para roubar e acabar explodindo todo um banco. Isso deixa dúvidas sobre até onde vai essa competência, essa racionalidade das facções.

Que mensagem os ataques passam ao governo do Estado?

É uma mensagem de querer demonstrar poder, é uma mensagem de confronto. É claro e evidente que as facções estão querendo confrontar uma postura que o governo tem tomado, que, novamente, digo, é uma postura correta.

Não ficar à mercê das facções é uma medida correta. Proibição de celulares também é uma medida correta. Transferência de alguns líderes para presídios de segurança máximo também é correto.

Qual é o impacto do pedido de apoio da Força Nacional por parte do governador Camilo Santana?

Estamos em uma situação em que temos de dar respostas imediatas. Essas respostas imediatas viriam com reforço nacional. É interessante que o governo tem batido na tecla de que isso não é uma questão local. É uma situação nacional. Nesse sentido, a União tem responsabilidade diante desse fato. Do governador, há um chamamento para que a União assuma.

Há coerência na postura que o governo vem tomando de fazer uma denúncia de que essa questão das facções e dos presídios decorre de uma situação nacional. Portanto, chamar a Força Nacional é um chamamento para que a União compartilhe dessas medidas.

Qual é a responsabilidade do governo do Ceará nesta situação?

O governo está tomando posições que levam a uma contraposição das facções. Isso está ficando claro e não foi a primeira vez. Inclusive, já teve um carro que foi incendiado perto da Assembleia Legislativa do Ceará há 2 ou 3 anos. Aquilo já foi uma medida contrária a uma posição do governador. As ações das facções decorrem de contraposição a uma postura do governo.

Para mim, agora, imediatamente teve a questão da fala do novo secretário. Quando o secretário de Segurança Pública, há dois anos, fez aquele pronunciamento dizendo que para bandidos será cemitério ou justiça, isso é uma frase de confronto. Quando este novo secretário de Administração Penitenciária faz esse pronunciamento, é uma nova fala de confronto.

Temos que tomar muito cuidado com essa questão de confronto. Não é que temos de deixar de tomar posições. O governo tem de tomar posição porque é avaliado pela manutenção de paz e segurança. Mas essas são frases de confronto, eu sou contra essa postura porque acirra os ânimos. Ontem conversei com algumas pessoas na periferia da cidade e todas elas diziam "Esse secretário quer confrontar. Não podemos confrontar os homens". Então, acho que isso é muito da sapiência.

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