RIO SOLIMÕES: Agentes federais em operação na fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, na cidade de Tabatinga / Andre Vieira/Getty Images
Da Redação
Publicado em 21 de outubro de 2017 às 03h44.
Última atualização em 21 de outubro de 2017 às 14h33.
As Forças Armadas brasileiras estão revendo a estratégia de controle de fronteiras. A partir deste mês de outubro, o plano passou a ser o de intensificar operações pontuais para reprimir a ação de criminosos, com foco em crimes de contrabando, tráfico de armas e de drogas. A reformulação da estratégia foi necessária após uma série de cortes no orçamento. Entre 2012 e 2017, o orçamento das Forças Armadas para gastos discricionários caiu 44%, passando de 17,5 bilhões para 9,5 bilhões de reais. O Ministério da Defesa também sofreu cortes: em julho deste ano, a pasta teve 5,75 bilhões de reais bloqueados, um contingenciamento de 26% da verba prevista para o ano.
O Brasil possui 16.885 quilômetros de extensão fronteiriça, que separam o Brasil da Guiana Francesa, Guiana, Suriname, Colômbia, Venezuela, Peru, Bolívia, Paraguai, Argentina e Uruguai. Com a terceira maior fronteira contínua do mundo, o país enfrenta complexas questões sociais e políticas em suas regiões limites. Além do crime organizado, o país precisa fazer o controle de violações ambientais, fluxos migratórios e comércio ilegal de produtos.
A principal operação exercida pelas Forças Armadas nas fronteiras, desde 2011, era a Operação Ágata, que consiste numa ação integrada entre 12 ministérios e 20 agências governamentais, com articulação contínua entre militares e agentes de segurança pública. Não havia soldados em postos permanentes, mas eram mobilizadas grandes operações de combate ao crime. Segundo o almirante Ademir Sobrinho, o objetivo agora é intensificar as operações pontuais, que possibilitam maior agilidade e maior uso do fator surpresa.
Segundo o almirante um contingenciamento de recursos fez com que o orçamento das Forças Armadas fosse realocado. “Em razão da crise financeira que afetou as contas públicas, foi necessário “reduzir a intensidade das operações”. Este ano, 145 ações foram deflagradas pelas Forças Armadas, que empregaram 10.906 soldados — número bem inferior ao alocado no ano passado. Segundo dados conseguidos pela Agência Lupa, via Lei de Acesso à Informação, em 2016, o efetivo militar na operação Ágata foi superior a 24.000 soldados. À EXAME, foi informado que o orçamento das operações não seria divulgado, sob a alegação de que o valor revelado poderia implicar na segurança e efetividade das operações.
Com a nova estratégia, nada garante que a segurança vá melhorar. Para o historiador Marco Aurélio de Oliveira, professor especializado em estudos fronteiriços na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), as forças policiais são despreparadas para atender às peculiaridades que esse tipo de território demanda. “A lei e a polícia só chegam até o limite da nação. Além disso, existe um lapso de tempo e espaço entre as ações da polícia e as do que dos que atuam ilegalmente nas fronteiras”, afirma o especialista.
Não é só questão de segurança
Estima-se que 11 milhões de pessoas vivam nas regiões limites do país. Elas representam somente 5% da população brasileira. Marcadas pela baixa “densidade institucional”, a região não é muito representada pelos órgãos públicos, abrindo espaço para subdesenvolvimento e pobreza. Segundo um estudo publicado pelo grupo Retis, de UFRJ, as cidades enfrentam conflitos fundiários, injustiça social, tráfico de armas e drogas e contrabando.
Para a geógrafa e coordenadora do Retis, Lia Osorio Machado, os projetos de desenvolvimento econômico e social foram diminuindo ao longo da última década, com as mudanças políticas dos próprios governos. Segundo ela, os projetos se tornaram menos “ambiciosos” por dois motivos: a diminuição dos acordos entre os países do continente sul-americano e a priorização de projetos de segurança no lugar de políticas sociais. Mas projetos nessa linha já existiram. Em 1999, havia o Programa Social da Faixa de Fronteira, cujo principal objetivo era desenvolver as cidades fronteiriças, tanto do Brasil quanto a da cidade oposta no país vizinho.
O estigma em relação às regiões de fronteiras é alto. “As pessoas acham que as fronteiras são a origem do mal, com a chegada de armas e drogas. Mas, no caso de contrabando de armas, as fronteiras do continente não são a principal porta de entrada, e sim as marítimas”, diz Lia Machado. O almirante Ademir Sobrinho, das Forças Armadas, também chama a atenção para o intenso trabalho nos grandes centros urbanos. No mês passado, por exemplo, as Forças Armadas foram responsáveis pela patrulha de 103 pontos da região metropolitana do Rio de Janeiro.
Além disso, um dos principais dramas do controle das fronteiras é de ordem econômica, e não exclusivamente de segurança. Apesar de a Receita Federal também atuar na fiscalização, ainda é muito grande a quantidade de produtos que entram ilegalmente no país. De acordo com o órgão, no último ano, mais de 2 bilhões de reais em produtos ilegais foram apreendidos nas fronteiras, sendo cigarro o principal produto apreendido. No Brasil, 48% dos cigarros comercializados chegaram ilegalmente no país. Esse tipo de comércio ainda trás uma série de problemas agregados, como a exploração do trabalho humano e a falta de controle de qualidade.
Identidades na borda
Outro desafio das regiões limites do país é o fluxo de imigrantes. O professor de estudos migratórios latino-americanos da Universidade de Brasília, Leonardo Cavalcanti, afirma que hoje, o principal fluxo migratório para o Brasil é de um grupo indígena venezuelano, da etnia Warao, na região de Roraima. Eles chegam pela cidade de Pacaraima e têm dificuldade para obter documentação e abrigo. “Os waraos já enfrentavam conflitos na Venezuela porque ocupavam uma região rica em petróleo e, com a crise econômica, eles começaram migrar. O problema é que eles são de uma etnia muito diferente da dos indígenas brasileiros, e existe uma dificuldade de se comunicar”, afirma Cavalcanti, acrescentando que muitas dessas pessoas acabam ficando nas ruas, mendigando para sobreviver.
Outro dilema que já dura 25 anos é a entrada de bolivianos no país, pelas cidades de Corumbá (MS) e Guajará-Mirim (RO). Estima-se que mais de 400.000 bolivianos estejam em solo brasileiro, e que 40.000 cheguem todos os anos pelas fronteiras. Segundo Marco Aurélio, da UFMS, este é um fluxo contínuo, e que possui uma motivação ainda não explicada. A maior parte dos bolivianos chega ao Brasil com visto de turista. Depois de sua expiração, muitos continuam no país sem se regularizarem. “Parece que há um desentendimento ou uma falta de informação tanto por parte dos que chegam quanto por parte da fiscalização”, afirma.
Além desses problemas, Marco Aurélio salienta que outra questão permeia as relações entre as populações brasileiras e as dos países vizinhos: a xenofobia. A ocupação de territórios fronteiriços por brasileiros é geralmente conflituosa e marcada por preconceitos. “No estado do Acre, do lado boliviano, alguns fazendeiros brasileiros obrigavam os bolivianos a cantar nosso hino nacional. Parece que muito dos conflitos são marcados pela questão nacional”, afirma o especialista. Os dilemas das fronteiras são mais complexos do que se imagina, e mudam de característica ao longo dos 17.000 quilômetros que o país precisa administrar.