Bolsonaro e Biden: primeiro encontro na gestão Biden entre as duas maiores economias da América Latina (Montagem Exame - Akos Stiller/Bloomberg e Al Drago/Bloomberg/Getty Images)
Carolina Riveira
Publicado em 8 de junho de 2022 às 16h32.
Última atualização em 8 de junho de 2022 às 16h37.
Uma união de aliados improváveis. É o clima que ronda a aguardada reunião entre o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, e o norte-americano Joe Biden, prevista para esta quinta-feira, 9.
Bolsonaro está em Los Angeles para a nona edição da Cúpula das Américas, organizada pelos EUA com líderes da região. Embora Biden esteja no cargo desde 2021, será a primeira vez que os mandatários das duas maiores economias das Américas se encontram.
O presidente brasileiro chega ao evento com muitas críticas vindas de Biden e da elite do Partido Democrata — do meio-ambiente ao apoio declarado ao ex-presidente e rival Donald Trump. Mas com os boicotes que antecederam a cúpula e a ausência de presidentes importantes, Bolsonaro se tornou, também, o principal mandatário presente.
Os EUA escolheram não convidar Venezuela, Nicarágua e Cuba, países que o governo norte-americano não considera como democráticos. A medida levou o México, que tem a segunda maior economia da América Latina (atrás do Brasil) e é um dos principais parceiros comerciais dos EUA, a boicotar a cúpula.
O presidente Andrés Manuel Lopes Obrador enviou somente seu chanceler. Presidentes de países como Bolívia, Guatemala e Honduras também não viajaram.
“A grande ironia é que, para Biden, sobrou como ‘troféu’ somente um aliado declarado de Trump”, diz André Kaysel, especialista em estudos latino-americanos no Departamento de Ciência Política da Universidade de Campinas (Unicamp).
As ausências esvaziam um evento que seria a primeira interação mais próxima entre Biden e os vizinhos da América Central e do Sul.
A relação nas Américas é crucial para os EUA em um momento de disputa global com a China. Pequim já é o segundo maior parceiro comercial da América Latina e o primeiro de países importantes, como o Brasil — onde a China superou os EUA em comércio já há uma década.
“Há essa necessidade política de engajamento dos Estados Unidos com o Brasil, que Bolsonaro pode ou não aproveitar”, diz Maurício Santoro, professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
“É muito importante para os EUA terem o Brasil em uma série de iniciativas nas Américas. A cúpula acontece em um momento em que há a preocupação com a presença da China e, ainda, em trazer a região para uma coalizão anti-Rússia, em um cenário em que a América Latina tem sido especialmente mais cautelosa com a guerra”, diz.
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O próprio Bolsonaro ameaçou anteriormente boicotar o evento. No fim, decidiu comparecer sobretudo após o governo norte-americano concordar com um encontro bilateral com Biden, que o Itamaraty vinha solicitando há tempos.
Biden e Bolsonaro já estiveram no mesmo evento na última cúpula do G20, na Itália. Mas não se falaram na ocasião, tampouco tiveram uma reunião bilateral. Ao relembrar o momento, Bolsonaro disse que Biden o ignorou. “Encontrei ele no G20, ele passou como se eu não existisse”, disse no mês passado, afirmando depois que a situação poderia se dever à “idade” de Biden, que tem 79 anos, 12 a mais que o brasileiro.
“Bolsonaro está em um momento interno muito difícil no Brasil. E tentará usar a reunião com Biden para contrariar a imagem de que ele é um governante isolado no mundo”, completa Kaysel, da Unicamp.
Os últimos encontros de Bolsonaro com presidentes estrangeiros ocorreram em fevereiro, com o russo Vladimir Putin e o húngaro Viktor Orbán, às vésperas do início da guerra na Ucrânia.
Mesmo com a cúpula esvaziada, sair de Los Angeles com dividendos para sua imagem será uma missão complexa para Bolsonaro, na visão dos analistas.
Além de pressões sobre a situação ambiental do Brasil — um dos temas mais espinhosos da diplomacia brasileira no momento — Bolsonaro viajou simultaneamente ao desaparecimento do jornalista inglês Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira no Vale do Javari, na Amazônia.
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Há críticas de jornalistas estrangeiros, ativistas e família dos desaparecidos sobre poucos esforços do governo brasileiro em atuar nas buscas, até o momento lideradas por indígenas na região.
Antes de embarcar para os EUA, Bolsonaro falou sobre o encontro com Biden em entrevista à rede de televisão SBT veiculada na terça-feira. Disse que o presidente norte-americano não deve "entrar na questão ambiental" e “soberania” da Amazônia.
"Cúpula é um evento que sem o Brasil é bastante esvaziado. Terei uma reunião bilateral por 30 minutos com Biden, não sei o que ele vai falar de lá para cá, se entrar na questão ambiental já sei como proceder”, disse.
Como já havia feito em outras oportunidades, o presidente brasileiro também voltou a mencionar suposta fraude na eleição americana que deu vitória a Biden. “Quem diz é o povo americano. Eu não vou entrar em detalhes na soberania de outro país. Agora, o Trump estava muito bem. E muita coisa chegou para gente que a gente fica com pé atrás”, disse Bolsonaro.
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Enquanto isso, Biden recebeu em Washington nesta semana uma carta assinada por mais de 70 organizações da sociedade civil brasileira pedindo que os EUA cobrem de Bolsonaro o respeito ao resultado das eleições no Brasil em outubro.
Para além do Brasil, o evento também não se mostra o ideal para Biden na relação com outros países. Santoro, da Uerj, aponta que havia a expectativa de que os EUA usassem a cúpula para anunciar eventuais novas políticas na América Latina, como planos de investimento ou auxílio em meio à crise. Pouco foi dito até o momento.
Já alguns dos temas apontados como prioritários na agenda americana, como a onda de imigração vinda do sul, ficam esvaziados diante das ausências de países da América Central e do México.
Nesse cenário, não foi só a Bolsonaro que a Casa Branca teve de fazer concessões: para contar com o presidente argentino, Alberto Fernández, o governo norte-americano o convidou para uma visita à Casa Branca em julho. (Bolsonaro, por sua vez, se encontrará com Biden por 30 minutos durante a cúpula, mas não foi convidado ainda à Casa Branca como ocorreu no governo Trump.)
Embora não tenha boicotado a cúpula, Fernández, que é de centro-esquerda, disse que irá como “porta-voz” dos não convidados. Antes de embarcar para a Califórnia na terça-feira, voltou a dizer que a postura dos EUA ao não convidar alguns países atrapalha a unidade na região.
"A unidade não se declara, a unidade se exerce e a melhor maneira de exercê-la é não segregar ninguém", disse o argentino. "Nós lamentamos enormemente a ausência de países que não foram convidados, mas tentarei levar sua voz como presidente da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) que sou."
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A Cúpula das Américas surgiu na gestão do democrata Bill Clinton, nos anos 1990, com o intuito de criar uma grande área de livre comércio nas Américas, que seria batizada de Alca (e que terminou fracassando anos depois). Passados 30 anos, os objetivos da cúpula são hoje muito mais difusos, na visão de Kaysel, da Unicamp. “E a América Latina, definitivamente, não é mais a mesma que era há três décadas”, diz.
Nos jornais americanos nos últimos dias, por exemplo, se falou pouco sobre a cúpula, embora Biden vá passar dias em Los Angeles para o evento. A política local enfrenta problemas domésticos graves, como inflação, os últimos tiroteios em massa no país e uma eleição legislativa se aproximando em novembro, na qual Biden e seu Partido Democrata caminham para perder a maioria no Congresso.
Em meio a esse momento complexo, tanto Bolsonaro quanto Biden terminaram, de formas quase inesperadas, precisando da presença um do outro nesta semana. Mas os próximos dias em Los Angeles não devem trazer grandes movimentações — nem para o Brasil de Bolsonaro, nem para os EUA de Biden em sua busca por liderar nas Américas.
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