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Belo Horizonte discute se canalização dos rios contribuiu para tragédias

Volume de chuvas na capital mineira é o maior dos últimos 110 anos, deixando um rastro de destruição pela cidade

Belo Horizonte: chuvas já mataram ao menos 54 pessoas (Cristiane Mattos/Reuters)

Belo Horizonte: chuvas já mataram ao menos 54 pessoas (Cristiane Mattos/Reuters)

AO

Agência O Globo

Publicado em 30 de janeiro de 2020 às 10h20.

Belo Horizonte — A enchente que alagou dezenas de ruas de Belo Horizonte na noite de terça-feira trouxe à tona um debate que mobiliza especialistas há pelo menos 15 anos, mas permanecia ignorado pelo poder público: a canalização dos rios que cortam a cidade e suas consequências.

De acordo com a Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap), dos 654 km da malha fluvial do município, 208 km estão escondidos sob ruas, avenidas e construções. Na última década, a capital mineira recebeu diversas obras que agravaram a situação.

O próprio histórico de ocupação da cidade de Belo Horizonte, erguida sobre uma malha fluvial, ajuda a explicar as cenas impressionantes dos últimos dias. O concreto de prédios, calçadas e avenidas impede o solo de absorver a água e sobrecarrega as galerias subterrâneas.

Na Avenida Prudente de Morais, importante via da região Centro-Sul, via-se o efeito prático: bueiros explodiram com a pressão da água e a rua se tornou um rio caudaloso, cuja correnteza arrastou carros, placas e tudo o mais que havia pela frente — vídeos que registraram a cena viralizaram na internet.

Marcus Vinicius Polignano, ambientalista e coordenador do Projeto Manuelzão, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), diz que a área fazia parte do curso original do Córrego do Leitão. Ele aponta que toda a região afetada está dentro de um vale e que esse tipo de alagamento é esperado para esta formação geográfica.

"A água simplesmente fez o caminho que era dela. A rua não se tornou um rio, ali era um rio e muitas pessoas só tiveram conhecimento disso a partir da força desse fenômeno natural", afirma Poligniano.

 

Marcio Baptista, professor do Departamento de Engenharia Hidráulica e Recursos Hídricos da UFMG, explica que a chuva foi muito forte e muito rápida, sem tempo suficiente para o escoamento. As famosas ladeiras de Belo Horizonte, junto com a impermeabilização do solo, agravaram a situação que já era extrema.

"O declive fez com que a água descesse ainda mais rápido para o fundo do vale, que é a Avenida Prudente de Morais, por isso se formaram aquelas correntezas fortes", analisa o professor.

Estrutura viária é frágil

Baptista afirma que o fato dos rios passarem por dentro de tubulações subterrâneas fragilizaram toda a estrutura viária, permitindo grandes deslocamentos de asfalto e as eclosões das águas do córrego. Estes episódios foram responsáveis por grande parte dos danos vistos em Belo Horizonte ontem. Pelo menos onze vias amanheceram com trechos interditados.

Já Poligniano ressalta que os alagamentos não são um problema isolado na cidade. Ontem, o bairro Buritis, na região Oeste da cidade registrou fortes danos. Por baixo de suas ruas e avenidas, segue o Córrego Cercadinho, que tem grande parte canalizado. Na última sexta-feira (24), as chuvas intensas já haviam feito transbordar as águas de outros cursos d’água, como o Córrego Ferrugem e o Ribeirão Arrudas, também na região Oeste; e o Ribeirão Pampulha e o Córrego Sarandi, na região da Pampulha.

"Nós tivemos pelo menos 80 pontos críticos [de alagamentos] desde que as chuvas começaram. É um problema sistêmico, nós construímos mal a cidade. O desenho urbano foi absolutamente contrário às águas e nós estamos colhendo os frutos disso", lamenta o ambientalista.

O geógrafo Alessandro Borsagli, autor do livro “Rios invisíveis da metrópole mineira”, destaca que “há pelo menos meio século” é feita uma propaganda massiva em defesa da canalização e houve altos investimentos na prática. O Boulevard Arrudas, por exemplo, foi idealizado na gestão do então governador Aécio Neves (PSDB) a um custo inicial de R$ 40 milhões. A primeira etapa das obras foi inaugurada em 2007, com 1,4 quilômetro de extensão sobre o Ribeirão Arrudas, numa parceria entre o governo do estado e a prefeitura, comandada à época por Fernando Pimentel (PT). De lá para cá, a via recebeu diversas extensões.

Borsagli critica o alto custo das obras de canalização e afirma que é necessário adotar alternativas.

"Belo Horizonte precisa de técnicas de reabilitação alternativa para permitir uma permeabilidade do solo maior. Seriam precisas muitas intervenções, então não é possível estimar agora quais serão os custos dessas melhorias, mas certamente valeria a pena, principalmente levando em consideração o preço de uma obra como a do Boulevard Arrudas", compara.

Segundo o geógrafo, essa estratégia ajudaria a amenizar os efeitos dos transbordamentos, ainda que não os erradicasse. Poligniano, do Projeto Manuelzão, ressalta que essas técnicas vêm sendo discutidas mundialmente há décadas.

"No começo dos anos 2000, nós trouxemos para um congresso alguns pesquisadores alemães que já falavam isso. Existe um debate mundial de se criar “cidades esponja”, que teriam uma capacidade maior de absorção de água", afirma Poligniano. "Não reverter essa política urbana de canalização é uma burrice histórica."

Apesar de a Avenida Prudente de Morais ser conhecida por alagamentos, moradores relatam nunca terem visto nada parecido. A auxiliar de serviços gerais Ludmilla de Souza, de 25 anos, viu a água invadir o restaurante onde trabalha:

"Os bueiros explodiam e a água saía igual cachoeira. Eu fiquei com medo de explodir tudo", lembra.

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