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Como está a situação das audiências de custódia no Brasil 4 anos depois

Estudo do IDDD revela que há inúmeras violações do direito de defesa de presos nas audiências, incluindo casos de racismo

Audiência de custódia no Brasil (Mario Tama/Getty Images)

Audiência de custódia no Brasil (Mario Tama/Getty Images)

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Clara Cerioni

Publicado em 14 de setembro de 2019 às 08h00.

Última atualização em 18 de setembro de 2019 às 19h07.

São Paulo — No país com a terceira maior população carcerária do mundo, a audiência de custódia despontou quatro anos atrás como uma alternativa para reduzir o número de detentos provisórios.

Formalizada em 2015, por meio da resolução 213/1015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a medida determina que uma pessoa presa em flagrante ou por mandado seja apresentada a um juiz em até 24 horas.

A resolução buscou efetivar dois tratados internacionais dos quais o Brasil já é signatário desde 1992: a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.

O objetivo de colocar o preso frente a um juiz em prazo curto é impedir que prisões ilegais se estendam e evitar detenções desnecessárias, além de fortalecer a prevenção e o combate à tortura.

No entanto, enquanto no ano da resolução do CNJ o país tinha 622 mil detentos, sendo 39% provisórios, quatro anos depois a população carcerária subiu para 812 mil, com 41,6% provisórios.

A conclusão está no relatório "O fim da liberdade", produzido pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), e divulgado nesta semana.

Entre abril e dezembro de 2018, cerca de cem pesquisadores parceiros acompanharam e analisaram mais de 2,5 mil audiências de custódia, que estão descritas em 134 páginas do documento.

Os monitoramentos foram realizados em 12 cidades: Belo Horizonte (MG), Brasília (DF), Feira de Santana (BA), Londrina (PR), Maceió (AL), Mogi das Cruzes (SP), Olinda (PE), Porto Alegre (RS), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA) e São José dos Campos (SP).

"O que o relatório mostra, em resumo, é que, em todas as localidades, os atores da justiça ignoram preceitos constitucionais, a liberdade do indivíduo como regra e a aplicação de medidas cautelares sob medida. Com isso tudo, a justiça se mostra irracional, punitivista em excesso e desconsidera tanto normas legais quanto de direitos humanos", diz Hugo Leonardo, advogado criminal e presidente do IDDD.

Perfil

"Com esse cabelo black power é preventiva na certa". A frase, proferida por um escrevente, foi presenciada por um dos pesquisadores, em Salvador, durante uma audiência de uma pessoa negra. Segundo o relato, a fala fez o juiz "gargalhar".

A situação, segundo o relatório, ilustra o papel do racismo estrutural na forma de funcionamento da justiça e da ordem social no Brasil.

O argumento pode ser validado pelos dados das audiências monitorados: os negros representam 64,1% dos casos, contra 35,7% dos brancos, 0,15% de amarelos e 0,05% de indígenas. 

Além de ter cor, a prisão também tem gênero e classe social: ao todo, 91% dos processos foram contra homens e, em 60% dos casos, são de pessoas que têm apenas o ensino fundamental.

Um dos dados que mais chamam atenção é de que, no universo de crimes avaliados, o tráfico surge em 26% dos casos, isoladamente considerado, e em 34,3% dos casos, considerando também os casos com mais de um crime.

"É um número bastante expressivo, pois sinaliza qual tipo de crime é majoritariamente levado pelas autoridades policiais à audiência de custódia. Lembrando que o tráfico de drogas é um crime sem violência ou grave ameaça e sem vítimas", diz o relatório.

Uma segunda constatação é a de que as audiências de custódia não são consideradas positivas pela maior parte do judiciário, que a considera uma "salva-guarda dos criminosos".

"A percepção de que as audiências são um instrumento importante é maior nas instâncias superiores: apenas 50,3% dos/as juízes/as de primeiro grau concordam com a realização das audiências de custódia, contra 80,9% no segundo grau e 88,2% nas cortes superiores", cita o documento com base em um estudo da Associação dos Magistrados Brasileiros.

Audiências sem padrão

Apesar de a resolução definir os procedimentos adotados para as audiências de custódia, ainda não há nenhuma legislação federal que garanta seu cumprimento.

Com isso, conclui o estudo, nem todos os presos têm as mesmas condições na hora de análise da prisão.

Em apenas cinco cidades havia garantia de uma conversa reservada entre o preso e seu defensor. Nas outras sete cidades, os diálogos acontecem em corredores ou em salas compartilhadas.

"A realização de conversas nos corredores, diante de terceiros e, sobretudo, de agentes de segurança, pode vir a comprometer tanto a narrativa do/a custodiado/a quanto a elaboração da estratégia de defesa", conclui o relatório.

Há, ainda, situações em que a falta de privacidade inibe o acusado de contar que sofreu maus-tratos ou de tortura na abordagem policial, como relata um pesquisador que acompanhou audiência de custódia em Salvador de um homem detido em casa acusado de tráfico de drogas.

"Perguntado sobre os relatos de maus tratos, o custodiado explicou que sofreu tortura e agressões, tendo assumido ‘algo que não fez’. Segundo seu relato, diz que cooperou com a polícia em tudo. Disseram que iam matá-lo. Bateram na costela, desferiram murros, seguraram-no pelo pescoço e aplicaram choques. Vasculharam seu celular, o humilharam e o ameaçaram de morte. Perguntado pelo promotor se sofreu coação ou violência pelo delegado quando prestou depoimento em delegacia, respondeu que não, mas que os policiais que o prenderam estavam na sala a todo momento durante seu depoimento".

Projetos de lei

De acordo com Hugo Leonardo, presidente do IDDD, para resolver alguns dos problemas encontrados é urgente que o Congresso Nacional discuta o Projeto de Lei 470/2015, que altera o Código de Processo Penal para estabelecer a audiência de custódia.

Há em curso, no entanto, outros três projetos que vão na direção contrária ao proposto pelo instituto, um deles é o PL 882/19, de autoria do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro.

A proposta estabelece que audiências de custódia devem ser feitas, obrigatoriamente, por meio de videoconferência.

"Diante de todo o debate sobre a importância do contato pessoal e sobre a necessária privacidade para garantir a plenitude do direito de defesa, o IDDD manifesta-se contrário à implementação da videoconferência e reforça a importância de garantir que haja um espaço seguro para o/a custodiado/a apresentar sua versão sobre os fatos", diz o relatório.

O presidente do instituto rebate os argumentos de que a videoconferência ameniza o desafio logístico e o custo de transportar o preso para o local de audiência.

Segundo ele, nada é mais econômico para os cofres públicos do que resolver os problemas de superlotação e de presos provisórios no Brasil.

"Se as audiências de custódia forem realizadas da maneira certa, se as decisões judiciais estiverem fundamentadas e respeitarem a Constituição, que diz que a liberdade é a regra até que se prove a culpa definitiva, a liberação das pessoas e a diminuição de um aprisionamento desnecessário é o que vai trazer uma economia importante para o Estado", finaliza.

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