pela primeira vez em três anos, a indústria da transformação registrou expansão no 1º semestre deste ano em todas as categorias tecnológicas, segundo o Iedi (Leandro Fonseca/Exame)
Repórter
Publicado em 15 de novembro de 2024 às 06h53.
A Nova Indústria Brasileira, programa de política industrial do governo, tem seis missões. Mas, na visão do economista Rafael Cagnin, do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), a política pública tem duas obrigações.
"A primeira é alavancar a produtividade. E alavancar a produtividade é muita coisa, porque obter produtividade pode vir de diversas frentes e diversos fatores", diz Cagnin em entrevista à EXAME. "E o segundo fator é transformar nosso potencial energético, sobretudo de energia limpa, como um vetor de competitividade da produção nacional. Porque a gente tende a ver no mundo cada vez mais a exigência de selos e comprovações de pegada de carbono. E o Brasil sai na frente, pelas características de sua matriz energética, nesse processo."
Ele enxerga os 10 meses de implantação da NIB com sentimentos mistos. De um lado, vê avanço institucional com a recriação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI) e a criação de missões para nortear os objetivos industriais. Ao mesmo tempo, não credita os bons resultados recentes da indústria ao programa. Para ele, trata-se de um "dinamismo conjuntural", que tem como elemento importante a redução da taxa de juros de agosto de 2023 a maio 2024.
Esse cenário pode piorar para a indústria na esteira do novo ciclo de aperto monetário previsto pelo Banco Central, que tem aumentado as taxas para tentar cumprir a meta de inflação do país. "Ao que tudo indica, esse início de nova elevação dos juros é um problema, porque vai tirar dinamismo desses ramos e atividades industriais produtoras de bens duráveis", diz. "As ações de transformação da indústria que a NIB se propõe podem semear um terreno mais árido de crescimento industrial, caso os juros sejam elevados de forma significativa e por um período prolongado", afirma.
Prolongado ou não, esse não é o único desafio, segundo o economista, para o Brasil reviver o auge industrial que o marcou entre as décadas de 1930 e 1980. Ainda assim, o país tem uma "janela de oportunidade" como nenhuma outra nação, ao apostar na indústria verde, garante ele.
"O que a gente não pode é chegar atrasado na nossa própria festa, é esse que é o problema. Essa mudança climática, essas potencialidades de energia limpa que o Brasil tem, fazem com que a festa seja nossa. Só não podemos chegar atrasado nela, porque a janela de oportunidade está lá", afirma.
A indústria brasileira teve resultado positivo neste ano com destaque no setor de bens de capital. Um estudo do Iedi mostrou, inclusive, que pela primeira vez em três anos, a indústria da transformação registrou expansão no 1º semestre em todas as categorias tecnológicas. Esses resultados já podem ser atribuídos à nova política industrial do governo?
Avalio que não. Evidentemente, o resgate da atuação do BNDES foi um aspecto importante para dinamizar os bens de capital, que estão dentro da maior intensidade tecnológica da economia. Mas, ao meu ver, esse dinamismo um pouco superior da indústria neste ano ainda é um dinamismo conjuntural. Quando se fala da NIB, de política industrial, o objetivo é transformar a estrutura produtiva, transformar a estrutura industrial. Para transformar, é importante que as atividades industriais estejam crescendo, mas não basta crescer. Porque é possível crescer uma estrutura industrial sem transformá-la: cresce-se o setor, as atividades e os produtos que já existiam, e essa capacidade produtiva já estava pronta. Na NIB, o Brasil fala da transformação e modernização da estrutura industrial. O desempenho de 2024 é o início, diga-se de passagem, de uma nova fase industrial, o que é um pré-requisito ou um facilitador dos objetivos da NIB. Esse é, portanto, o início de um processo, ou pode vir a ser o início.
Por que essa ressalva?
É importante dizer "pode vir a ser", porque, como é ainda um desempenho muito conjuntural, um elemento importante para essa dinamização foi a fase anterior de redução das taxas de juros, de agosto de 2023 a maio de 2024. Isso proporcionou mais dinamização ao mercado interno. Houve também desaceleração da inflação, melhora do quadro de emprego, aumento da renda real, os programas públicos de transferência de renda, correção do salário mínimo acima da inflação. Tudo isso potencializou o mercado consumidor e, junto, houve uma melhora das condições de crédito tanto para as empresas quanto para as famílias. O crédito também ajudou a dinamizar o mercado consumidor. Mas, em setembro, houve uma elevação novamente da taxa de juros, o que pode prejudicar o crescimento da indústria no Brasil. Desse ponto de vista, as ações de transformação da indústria que a NIB se propõe podem semear um terreno mais árido de crescimento industrial, caso os juros sejam elevados de forma significativa e por um período prolongado.
Isso afetaria o crédito?
A indústria é uma grande produtora de bens duráveis, que são bens de consumo duráveis, como, por exemplo, veículos, eletrodomésticos, eletroeletrônicos, informática, comunicação, celulares etc. E de bens de investimento, que também são bens duráveis, como máquinas e equipamentos mecânicos e elétricos, equipamentos de transporte, eletrônicos, entre outros. E, geralmente, esses bens têm financiamento associado. É por isso que o crédito é fundamental para boa parte da indústria produtora de bens duráveis, porque o mercado precisa de financiamento. Ao que tudo indica, esse início de nova elevação dos juros é um problema, pois pode tirar o dinamismo desses ramos e atividades industriais produtores de bens duráveis.
Com isso já previsto, há iniciativas que podem ser adotadas para compensar esse ônus que um aumento da taxa de juros pode trazer?
A primeira delas é o programa de depreciação superacelerada. Mesmo que as condições de financiamento do investimento possam piorar, as empresas podem retomar projetos de investimento e aproveitar esse programa pensado para a modernização da estrutura produtiva. A necessidade de modernização existe, e isso pode compensar um pouco o aumento de juros, pelo menos seus efeitos iniciais, porque a NIB tem duração de dois anos, não é infinita, tem um orçamento estabelecido e é pré-limitada. Outro fator mitigatório pode ser a própria atuação do BNDES. Ao dar fôlego financeiro para o banco funcionar de forma mais ativa, e direcionar esses recursos principalmente para investimentos em digitalização, inovação e sustentabilidade, isso pode criar um mecanismo que mitigue essa fase de aumento de juros e, ao mesmo tempo, ajude a transformar a estrutura industrial.
Isso posto, podemos afirmar que ainda é cedo então para apontar efeitos imediatos da Nova Indústria Brasil?
Sim, inclusive porque a NIB ainda não está pronta. Ela é um grande guarda-chuva, com algumas ações já em andamento, como, por exemplo, o programa Mover, o PADIS e o Combustível do Futuro. Todos eles são programas que compõem a NIB, já foram lançados, mas também precisam ter um pouco mais de clareza quanto aos instrumentos. Estamos numa fase de arquitetura. Temos seis missões, e agora cada uma das missões será desdobrada em três cadeias prioritárias. A metodologia disso ainda não está totalmente revelada, e nem todas as missões divulgaram suas cadeias. Há ainda um processo de construção do que é a NIB. Ela foi lançada, mas ainda não está completa e operando. Dado que temos dois anos de governo, é muito possível que o governo termine sem que a NIB esteja totalmente revelada, divulgada e implementada. O que existe agora são ações um pouco mais tradicionais e um quadro que sinaliza a relevância de termos um nível de juros mais baixo. O problema é que no Brasil, as condições de juros adequadas rapidamente são alteradas. Eu brinco que com os juros é o seguinte: para cima, todo santo ajuda; para baixo, nem em nome de todos os santos.
Mas além desse fator como um obstáculo, as próprias condições que colocaram o Brasil em um processo de desindustrialização também não seguem presentes? E a NIB é capaz de enfrentá-las? Porque há críticas sobre a abrangência dessas seis missões
A ideia da missão é enfatizar o que se quer da indústria, da política industrial e desse desenvolvimento industrial. Está tudo em relativa conformidade com as preocupações internacionais e tem esse papel de enfatizar. Agora, as missões precisam se tornar mais concretas. Ou seja, uma coisa é a missão, mas depois da missão é preciso definir as áreas onde elas vão atuar. A missão também ajuda a evitar uma abordagem excessivamente setorial, que foi um vício de períodos anteriores na elaboração da política industrial, ao olhar para a cadeia produtiva e não para o setor. Mas há questões. Por exemplo, na missão de digitalização, a meta é atingir 25% de digitalização das empresas industriais no Brasil até o final do governo atual. Foram estabelecidas algumas cadeias prioritárias: robôs industriais, semicondutores e produtos avançados. Mas, ora, como é que cada uma dessas três cadeias vai ajudar a atingir essa meta? Minha preocupação é que, no limite, se não forem bem amarradas as coisas, eu posso promover uma digitalização das empresas por meio da importação de máquinas, equipamentos, sensores e softwares.
Mesmo com o aprimoramento, a NIB segue vaga, é isso?
O que precisa ser explicitado, nesse caso, é o vínculo da produção nacional para a meta ser atingida. Só que isso não é uma crítica só para o Brasil. Em outras partes do mundo, em que também existe um processo intenso de diálogo e debate de redefinição de metas e calibragem, estamos discutindo política industrial por missão, é algo relativamente novo e que tem seus obstáculos. O importante é que não se perca essa noção de missão porque ela é fundamental para legitimar a ação de desenvolvimento industrial, que é responder o porquê se busca fortalecer essas atividades industriais.
E por que isso é relevante?
Porque nenhuma política industrial, nem a NIB, nem em qualquer outro país, caberá em um mandato só. A política industrial pode até nascer como uma política de governo, mas ela precisa sobreviver a mais de um ciclo político. E um aspecto fundamental para que ela vire uma política de Estado é que tenha legitimidade, e a missão ajuda nisso. Depois ela precisa ter uma institucionalidade relativamente forte e coesa para criação de consensos. E essa institucionalidade, no Brasil, é o Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial, o CNDI, que reúne vários ministérios, representantes do setor privado, o Iedi, inclusive, e reúne também representantes de trabalhadores. A participação de atores da sociedade civil faz com que, mesmo que o governo mude, diga-se o que é importante e funciona. O terceiro elemento é obter e comunicar as evidências de funcionamento e sucesso do programa. É preciso construir essa etapa com mais rapidez, de como vamos avaliar e acompanhar as políticas que estão sendo desenhadas e divulgá-las num âmbito mais aberto e transparente, comunicando a sociedade.
E quanto à crítica de outros especialistas sobre o número de missões por parte do Estado?
Tem muitos desafios em política industrial. Há o desafio da implementação, que não é trivial no Brasil, tem o risco da pulverização de iniciativas, porque são 6 missões, cada missão vai ter 3 cadeias que formam, ao todo, 18 cadeias. É bastante coisa e pode ser um problema. Quando falo de pulverização, é isso. A gente pode ter vários bons projetos, só que um projeto pequeno. E por serem pequenos, eles podem ter um impacto muito pequeno ou mesmo imperceptível quando a gente olha para dados agregados da economia. Essa pulverização de iniciativas pode ser um problema. Costumo brincar que temos seis missões, mas apenas duas obrigações.
E quais são elas?
A primeira é alavancar a produtividade. E alavancar a produtividade é muita coisa, porque obter produtividade pode vir de diversas frentes e diversos fatores. A produtividade é uma conta de chegada. Ela inclui melhorias de infraestrutura, o próprio processo de digitalização, programas de extensionismo como, por exemplo, o programa Brasil Mais Produtivo, tem muita coisa que podemos e precisamos fazer para alavancar a produtividade. E o segundo fator é transformar nosso potencial energético, sobretudo de energia limpa, como um vetor de competitividade da produção nacional. Porque a gente tende a ver no mundo cada vez mais a exigência de selos e comprovações de pegada de carbono. E o Brasil sai na frente, pelas características de sua matriz energética, nesse processo.
Essa é a nossa carta na manga? Quais são as oportunidades que o Brasil teria?
Não podemos achar que está tudo dado, temos muito esforço para continuar melhorando inclusive. Mas temos potencialidades muito grandes inclusive em mercados que estão se formando agora. O Brasil pode fincar o pé primeiro e ter uma posição de destaque em nível global. Primeiro, por exemplo, em SAFs, que é biocombustível para aviação, comprar hidrogênio sustentável. Esses são exemplos de mercados que ainda não estão organizados, não são mercados maduros. Isso faz com que haja riscos, é verdade, sabemos que grandes oportunidades têm risco envolvidos, mas aí são riscos tecnológicos. Tem uma agenda do Brasil não só de produzir SAFs ou hidrogênio, mas de participar do esforço de desenvolvimento tecnológico de amadurecimento desses mercados, que é o que vai torná-los mercados de menor risco e custo. Se não começarmos a fazer isso hoje, perderemos os ganhos de ser um dos primeiros entrantes.
Como o senhor vê o Brasil diante do mundo?
Estamos num caminho correto de reconhecer a relevância da indústria, o que não é só o Brasil, o mundo inteiro percebeu que não dá para seguir com uma trajetória de relevância abrindo mão de sua indústria. Os asiáticos sempre souberam, mas o mundo ocidental, inclusive os países desenvolvidos, perceberam que se não voltar a repotencializar as competências industriais e tecnológicas, daqui a pouco será ultrapassado por outros que estão fazendo isso, dentro da China e da Ásia de forma geral. É importante que o Brasil resgatar essa agenda de política industrial. O país recuperou uma institucionalidade muito importante da relação entre setor público e privado, recriamos o MDIC, reativamos o CNDI, temos uma visão mais clara do que precisamos de política industrial, que essa indústria é um meio, e não um fim em si mesmo. E que ela é o fio condutor de desenvolvimento para o país, não precisa apenas colocar a indústria para crescer, mas transformá-la, ou seja, modernizar, descarbonizar, complementar com atividades de maior intensidade tecnológica, por isso que é muito feliz o termo neoindustrialização.
A indústria brasileira é conhecida por pagar uma das cargas tributárias mais altas. A NIB tem algum efeito sobre isso?
A NIB reconhece que a política industrial não é compensatória. Ou seja, ela não serve para reduzir ou compensar, por exemplo, que, numa estrutura tributária ruim, é preciso dar isenções porque há tributações que prejudicam o setor. Não tem que fazer as duas coisas. Tem que ter uma reforma tributária e uma agenda de redução do Custo Brasil, que é sistemática, sempre. Toda a legislação e regulamentação que impõe custo precisa ser justificada. Há mais clareza do que antes nesse debate, de que a política industrial é para acelerar o processo de modernização e transformação da indústria, mas sem uma agenda de redução de Custo Brasil e de aumento de competitividade da produção nacional, você vai semear em terreno infértil. E é isso que não queremos.
Mas voltando algumas perguntas atrás, o senhor citou que o Custo Brasil é um obstáculo e há outras condições presentes que colocaram o país em um processo de desindustrialização...
Eu discordo um pouco desse comentário. Embora as condições de competitividade que se deterioraram e levaram à desindustrialização do Brasil estejam aí, a desindustrialização também contou com um período de transformação da economia mundial importante, houve um processo de transformação. Nos anos 80, a nossa industrialização por substituição de importação já tinha dado a contribuição que tinha que dar. E o Brasil não conseguiu encontrar um novo modelo, mais aberto e integrado na economia internacional, porque estava vivendo um momento muito adverso da economia na América Latina. Houve crise da dívida, hiperinflação no Brasil, estrangulamento externo de balanço de pagamentos. Tinha uma situação adversa. Hoje temos o oposto disso.
E qual seria ele?
Há um ambiente internacional muito propício para o fortalecimento das competências industriais brasileiras, uma reorganização de cadeias globais de valor a regiões e países menos suscetíveis a tensões e conflitos geopolíticos. A América Latina, por ora, é uma região relativamente isolada dos grandes polos de tensão geopolítica. Temos formação de descarbonização. O potencial energético, principalmente de energia limpa que o Brasil tem e que o mundo demanda. O mundo vai precisar disso se quiser combater o aquecimento global e sobreviver, precisará mobilizar esse potencial de energia limpa que o Brasil tem. Essa necessidade vai pedir do país uma atuação e inserção diferentes na economia global do futuro. É o que chamamos de janela de oportunidade.
Quem não vê com bons olhos a abrangência das missões da NIB diz que o Brasil está perdendo essa janela ao não focar na indústria verde. O termo também parece vago na NIB. Como o senhor avalia?
O tempo é importante e temos todo o tempo do mundo para cumprir essas 6 missões e nem as obrigações que coloquei, porque estamos em uma economia competitiva. Não só temos que caminhar na direção que outros países industriais estão caminhando, mas temos que fazer isso uma velocidade semelhante. A capacidade de o Brasil se manter e posicionar como uma potência industrial que é, – a despeito da desindustrialização, o Brasil tem uma competência industrial importante. Mas se o país quer manter ou recuperar a posição que já teve décadas atrás, é preciso avançar na direção que o mundo esta avançando.
Como assim?
Da descarbonização, digitalização e aumento de produtividade, mas é preciso avançar numa velocidade compatível. É o time, o tempo urge, porque as inovações vão sendo construídas, os países vão criando competência em setores estratégicos, vão entrando em mercados novos e apropriando-se dos benefícios que isso tudo traz. O que a gente não pode é chegar atrasado na nossa própria festa, é esse que é o problema. Essa mudança climática, essas potencialidades de energia limpa que o Brasil tem, fazem com que a festa seja nossa. Só não podemos chegar atrasado nela, porque a janela de oportunidade está lá, o país está bem posicionado, mas se demorar demais para mobilizar essa agenda e ter uma estratégia firme em direção, chegará atrasado em sua própria festa.