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Análise: Bolsonaro usa ONU para afagar base e não alivia crise da Amazônia

Presidente perdeu a oportunidade de usar o momento para mostrar compromisso ambiental, mas impacto sobre economia deve ser marginal

Bolsonaro na ONU (Lucas Jackson/Reuters)

Bolsonaro na ONU (Lucas Jackson/Reuters)

João Pedro Caleiro

João Pedro Caleiro

Publicado em 24 de setembro de 2019 às 15h00.

Última atualização em 24 de setembro de 2019 às 16h45.

São Paulo — O presidente Jair Bolsonaro usou o seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) para falar com sua base eleitoral e perdeu a oportunidade de dissipar preocupações internacionais com a Amazônia, de acordo com especialistas ouvidos por EXAME.

"O que a gente está vendo é que ele não quer moderar o discurso. Há um cálculo político doméstico, já que ele foi eleito com um discurso polarizante como esse", diz Christopher Garman, diretor para as Américas da consultoria política Eurasia.

O presidente iniciou sua fala de 30 minutos dizendo que o Brasil chegou próximo ao socialismo, que a ideologia inundou todas as áreas da sociedade e fez críticas ao programa Mais Médicos, o comparando a um tipo de escravidão "respaldado por entidades de direitos humanos do Brasil e da ONU".

Também falou sobre defesa da identidade biológica das crianças, Cesare Battisti, Foro de São Paulo e a facada que recebeu. Elogiou o ministro Sergio Moro e o presidente americano Donald Trump e atacou duas vezes o cacique indígena Raoni, de 89 anos, cotado para o Nobel da Paz.

"A ideologia invadiu a própria alma humana para dela expulsar Deus e a dignidade com que Ele nos revestiu", disse Bolsonaro em um momento.

Para Maristela Basso, professora de direito internacional da Universidade de São Paulo, o presidente não entendeu para quem estava falando e abriu tanto o leque que não conseguiu deixar uma mensagem consistente:

"Faltou foco e destinatário. Ele está falando para os brasileiros ou para o mundo? Discurso na ONU não é de prestação de contas do que se está fazendo internamente. Ele tratou de tudo e não deu resposta para nada", diz ela.

"Foi muita gente dando palpite e quem deveria opinar não opinou, que são os estrategistas do Itamaraty que sabem quais são os temas que vão ser discutidos na Assembleia Geral", completa.

Amazônia

Uma das grandes expectativas era em relação à fala de Bolsonaro sobre a Amazônia, onde ocorre uma alta de queimadas e desmatamento ilegal neste ano associada por críticos à retórica de Bolsonaro, ao desmonte da fiscalização, além da própria negação de dados oficiais.

No discurso, o presidente culpou ataques sensacionalistas da grande parte da mídia, também um dos principais alvos do discurso.

Todos os dados citados pelo presidente como prova do compromisso brasileiro com a o meio ambiente foram generalistas, como o de área de preservação total, sem nenhuma menção a dados que mostrassem alguma melhora em 2019.

"Foi uma oportunidade perdida de fazer uma defesa mais enfática das medidas que o governo está tomando, como as ações dos militares, e endereçar ao invés de desqualificar as críticas. Foi muito light nessa área, sendo que ele não precisaria ter voltado atrás para fazer isso", diz Garman.

Ele nota que supostas ameaças à soberania da Amazônia por organizações não-governamentais e potências estrangeiras são uma preocupação de longa data dos militares, e portanto um ponto em que eles têm alinhamento com o presidente.

"Essa ideia da soberania absoluta sobre recursos naturais vai de encontro com tratados e convenções internacionais que o Brasil ratificou. O discurso foi altamente contraditório", diz Maristela.

Um ponto sensível é o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, que foi assinado mas precisa ser aprovada por todos os países para entrar em vigor.

"Outro país embarcou em falácia da mídia sobre a Amazônia e nos tratou com desrespeito e espírito colonizador", disse Bolsonaro, numa referência ao presidente francês, Emmanuel Macron.

Lucas de Aragão, sócio da Arko Advice e professor de Risco Político, nota que o meio ambiente é uma desculpa conveniente que encobre a resistência antiga do agronegócio europeu à abertura comercial.

Ela também é arma política usada por Macron em um momento de baixa popularidade, mas o Brasil precisa saber reagir a isso de forma inteligente.

"O Brasil não pode dar margem para esses argumentos e errou nisso, de não criar a narrativa de defender o seu lado da história", diz Lucas.

Tanto Garman quanto Aragão notam, no entanto, que a repercussão negativa de um discurso como o de hoje e dos ruídos diplomáticos sobre a economia é limitada.

"Há fundos soberanos e europeus que se preocupam sim, pois tem ideais mais progressistas, mas em geral, o dinheiro é pragmático", diz Lucas.

Ele calcula que dos seus contatos com fundos e empresas estrangeiras, apenas cerca de 5% a 10% tem referência a questões como a da Amazônia, e que sem os incidentes, o fluxo de dinheiro estrangeiro para o país não teria sido diferente este ano.

O que preocupa mais os estrangeiros, segundo ele, são questões como o atraso na reforma da previdência, a falta de clareza na reforma tributária e a posição do Congresso sobre as privatizações - mas principalmente a falta de crescimento econômico, tema citado de forma lateral pelo presidente.

"Não pode haver liberdade política sem que haja também liberdade econômica. E vice-versa. O livre mercado, as concessões e as privatizações já se fazem presentes hoje no Brasil", destacou Bolsonaro.

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