Enem: faculdades privadas se dizem dispostas a adiar o início do ano letivo para comportar uma eventual mudança nas datas do exame (Marcello Casal Jr./Agência Brasil)
Carolina Riveira
Publicado em 11 de maio de 2020 às 08h58.
Última atualização em 11 de maio de 2020 às 12h34.
Estudantes brasileiros começam a partir desta segunda-feira, 11, a se inscrever no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), prova que dá acesso a algumas das principais universidades públicas e privadas do Brasil. No ano passado, 5,1 milhões de alunos se inscreveram.
Criado em 1998 ainda no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) como política para avaliar os conhecimentos de alunos do Ensino Médio, o Enem foi transformado na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no maior vestibular do país. Mas a pandemia do novo coronavírus jogou uma série de incertezas sobre o ecossistema de admissão das universidades e o futuro de milhões de jovens.
O Ministério da Educação (MEC) decidiu por manter o calendário do Enem, com provas marcadas para 1º e 8 de novembro. Mas pouca coisa é certa sobre a prova no momento, o que vem fazendo com que uma série de pesquisadores, professores, organizações e alunos passem a defender o adiamento do exame.
Com a evolução do coronavírus, não se sabe se até novembro a pandemia terá se dissipado a ponto de a prova ocorrer normalmente. O Brasil chegou a mais de 11.000 mortes e mais de 160.000 casos de covid-19.
Neste cenário, o governo ampliou o plano de provas digitais, cujos testes já estavam previstos para este ano -- algo que nunca aconteceu em larga escala no Enem antes. Serão 100.000 vagas voluntárias em algumas cidades para fazer o Enem no formato digital, que ocorrerá em datas diferentes, nos dias 22 e 29 de novembro. O aluno deverá escolher se quer fazer o Enem digital na hora da inscrição.
Outro dos pontos mais sensíveis é o cancelamento de aulas presenciais desde o fim de março em todo o Brasil. Escolas das redes públicas e privadas têm precisado recorrer a modalidades de educação à distância (EaD).
Uma peça publicitária do MEC divulgada na semana passada recebeu críticas nas redes sociais por não levar em consideração as dificuldades de estudo impostas pela pandemia. Com o mote "O Brasil não pode parar", o vídeo mostra quatro atores representando estudantes secundaristas incentivando o estudo à distância e pela internet. “Estude, de qualquer lugar, de diferentes formas. Por livros, internet, com a ajuda à distância dos professores”, diz uma das alunas.
Países em todo o mundo vêm atrasando exames nacionais similares ao Enem. Levantamento do Instituto Unibanco mapeou 19 países com provas parecidas com a brasileira e mostrou que só cinco decidiram por manter o cronograma estabelecido antes da pandemia. Países como China, Estados Unidos, Espanha e parte da Colômbia já adiaram suas provas.
Uma decisão da Justiça Federal de São Paulo chegou a impor adiamento do Enem, mas o MEC recorreu e a decisão foi revertida. Entidades como o Conselho Nacional dos Secretários de Educação e o Conselho Nacional de Educação também se manifestaram a favor da remarcação da prova. A Frente Parlamentar Mista de Educação no Congresso, que inclui nomes como a deputada Tabata Amaral (PDT-SP), tenta coletar assinaturas para um decreto legislativo que exija o adiamento do Enem.
O ministro da Educação, Abraham Weintraub, defende manter o exame. "Não desistam, estudem", escreveu aos estudantes no Twitter no último dia 5 de maio.
O Ensino Médio brasileiro atende 7,5 milhões de alunos, cerca de 86% em escolas públicas (6,4 milhões, ante cerca de 1,1 milhão na rede privada), segundo dados de 2019, os últimos disponíveis. Nem todos os alunos que fazem o Enem saem diretamente do Ensino Médio -- o próprio ministro Abraham Weintraub reforçou em seu Twitter que só cerca de um terço dos inscritos no Enem no ano passado estavam na escola.
"Está difícil para todo mundo. É uma competição. Vamos selecionar as pessoas mais preparadas para serem os médicos, os administradores, os contadores", disse o ministro em uma transmissão em suas redes sociais.
Mas, sobretudo para a parcela dos alunos ainda na escola, a pandemia acentuou a discussão sobre as diferenças de preparação entre estudantes de escolas públicas e privadas. Dados da Pnad de 2017, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), compilados pelo pesquisador Fernando Rufino, mostram que menos de 40% dos estudantes brasileiros do Ensino Médio na rede pública têm computador ou tablet com internet banda larga em casa. Se incluídos só os alunos de redes privadas, são 83% com esse acesso. Os números também variam por estado.
"Temos a maioria dos estudantes sem condições de acompanhar adequadamente essa modalidade de ensino à distância, seja por falta de acesso às tecnologias, seja por falta de acesso a direitos básicos, como alimentação ou domicílios com estrutura suficiente", diz Andressa Pellanda, coordenadora-executiva da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que usou os dados sobre as diferenças no acesso à internet em uma cartilha para orientar professores sobre a modalidade EaD.
Em todo o Brasil, redes públicas e privadas se movimentam para oferecer algum tipo de ensino à distância com a quarentena. Além de aplicativos para aulas online, feitos em parceria com empresas privadas em estados como São Paulo e Rio de Janeiro, as redes públicas também vêm transmitindo aulas por televisão e rádio.
Apesar do esforço das redes, muitos formatos foram feitos às pressas e estão longe de um modelo de educação à distância ideal, afirma Ernesto Martins Faria, diretor-executivo do Iede, organização que estuda políticas educacionais. "Há pouco acompanhamento para saber se o aluno de fato ligou a televisão naquele horário, se assistiu ao conteúdo no aplicativo, se fez aquela lição, se precisa de alguma ajuda. EaD não é isso", diz.
Paralisações, no geral, têm impacto muito grande nos conteúdos absorvidos. O pesquisador aponta um estudo feito em escolas da África do Sul durante uma greve de professores em 2007. Embora as aulas tenham ficado paralisadas por somente 7% do ano letivo, as perdas em aprendizagem dos alunos corresponderam a 25% do previsto para o ano, na comparação com alunos que não foram impactados pela paralisação.
Com mais de um mês sem aulas, as escolas enfrentam uma paralisação sem precedentes. No Brasil, a última paralisação dessa escala aconteceu em 2009, com aulas suspensas por até duas semanas em alguns lugares em meio à disseminação do H1N1. Em São Paulo, a ocupação de algumas escolas por estudantes secundaristas no fim de 2015 também paralisou aulas formais por mais de um mês, embora alunos tenham organizado atividades como palestras e aulas públicas.
Enquanto as aulas não voltam, há desafios ainda mais complexos nas escolas, como a simples comunicação. Relatos de professores nas redes sociais dão conta da dificuldade em se comunicar com pais, alunos e secretarias durante a pandemia. "A própria motivação dos alunos de menor renda, que tendem a ter menos acompanhamento dos pais em casa, ficará afetada", diz Faria.
Para além da comparação com a rede privada, mesmo entre as próprias escolas públicas há algum nível de desigualdade. Dados do Inep, autarquia do MEC responsável por dados educacionais brasileiros e pela organização do Enem, mostram que, quanto maior o nível socioeconômico dos alunos, melhor o desempenho escolar, mesmo na rede pública.
O Inep calcula o nível socioeconômico (o chamado NSE) dos alunos em grupos entre 1 e 6, contabilizando fatores como renda e nível educacional dos pais. Dados compilados pelo Todos Pela Educação com base no NSE de 2018 mostram que, dos alunos da 3ª série do Ensino Médio com nível socioeconômico muito alto (no grupo 6), cerca de 83% conseguiu aprendizagem adequada em português e 63% em matemática. Nos alunos do nível 1, 2 e 3, menos de 24% teve aprendizagem adequada em português e menos de 4% em matemática.
Só a partir do nível 3 alunos podem ou não ter um computador. Esse grupo também tem famílias que ganham até 1,5 salário mínimo e pais que, no máximo, concluíram o ensino fundamental ou médio.
Já alunos do nível 5 têm renda familiar a partir de 2,5 até 7 salários mínimos e, no nível 6, de 7 a até 20 ou mais salários, além de pais com Ensino Superior e empregados em casa. Dentre os alunos do Ensino Básico com dados socioeconômicos disponíveis, esses grupos representam 7% das matrículas na rede pública, mas 70% na rede privada. Os últimos dados são de 2017.
Alunos de redes privadas e com nível socioeconômico mais alto também têm desempenho historicamente superior no Enem. Na cidade de São Paulo, que têm a maior rede de Ensino Médio do país, das 100 melhores escolas no Enem 2017, só quatro são públicas, segundo levantamento feito pela EXAME com base nos microdados disponibilizados pelo Inep. Mesmo entre as públicas, todas as dez melhores escolas têm nível socioeconômico 5 ou 4.
"O imbróglio em torno da realização do Enem está deixando claras e acentuando desigualdades que já existiam, e não só entre rede pública e privada. São desigualdades da sociedade brasileira e que se refletem na educação", diz João Marcelo Borges, diretor de estratégia política do Todos Pela Educação.
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Na prática, cancelar definitivamente o Enem é algo praticamente fora de questão para os especialistas ouvidos pela EXAME -- sob pena de virar de ponta cabeça o sistema de ingresso de todo o Ensino Superior do país para o ano letivo de 2021.
"Há muitos pontos em defesa de um adiamento do Enem. Mas deve ser feito de uma forma que garanta que a prova continuará sendo uma ferramenta de acesso ao Ensino Superior", diz Faria, do Iede.
Especialistas defendem algum tipo de sinalização mais concreta do MEC sobre o calendário de provas, para que estudantes possam se organizar -- e não sofrer com um adiamento em cima da hora antes de novembro caso a pandemia não tenha arrefecido o suficiente até lá.
O MEC, em resposta, circulou no Congresso um documento em que justificava por que não poderia adiar a prova. Entre as justificativas, está a logística de organização da prova, o prazo para pedido de isenção dos alunos e o fato de uma alteração no calendário atrasar o início do ano letivo em 2021. "Ou seja, um adiamento da execução do Enem em 3 meses implicará que o início do primeiro semestre de 2021 das faculdades dar-se-á apenas em junho ou julho de 2021", escreve o ministério.
O maior exemplo de adiamento de exames similares ao Enem é a China, que adiou a prova nacional do Ensino Médio, o Gaokao -- que avalia 10 milhões de alunos, o dobro do Enem. "Não existe desafio logístico de adiar nenhum exame no mundo maior do que adiar o Gaokao", diz Borges, do Todos Pela Educação. "Contratos com gráficas, por exemplo, podem ser renegociados. É uma situação de força maior que está prevista em contratos. Todas as empresas estão se reorganizando, e o mesmo vale para o poder público."
A saída defendida por apoiadores do adiamento do Enem é que o MEC chegue a um acordo com as faculdades e redes de ensino em todo o país para, se necessário, adaptar o começo do ano letivo nas faculdades em 2021 para acomodar os alunos do Enem.
Celso Niskier, presidente da Associação Brasileira de Mantenedores do Ensino Superior (ABMES), entidade que representa as faculdades privadas, não confirmou que há por ora uma negociação com o MEC sobre o começo do ano letivo de 2021 e sobre um adiamento do Enem. "Não há ainda essa discussão, até porque o ministro foi muito claro com relação a manter as datas do Enem", diz Niskier, que também é reitor do Centro Universitário UniCarioca.
No Brasil, o Enem passou a ser crucial nos anos 2010 para os sistemas de ingresso das faculdades privadas. É com a nota obtida no Enem que são concedidas bolsas financiadas pelo governo em faculdades privadas, no Prouni (Programa Universidade para Todos), e financiamento, pelo Fies (Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior). Muitas faculdades privadas também usam a nota do Enem para oferecer vagas diretamente a estudantes.
No Ensino Superior público, são feitas por meio do Enem seleções para as universidades federais, com o Sisu (Sistema de Seleção Unificada). Mesmo as universidades estaduais, que têm vestibular próprio, passaram nos últimos anos a dedicar parte de suas vagas a alunos do Sisu -- como é o caso das estaduais paulistas, a USP, a Unesp e a Unicamp. Até algumas universidades no exterior, como em Portugal, também usam os resultados do Enem em seu processo de admissão.
Procurado pela EXAME na quarta-feira, 6, o MEC informou que questões relativas ao Enem deveriam ser respondidas pelo Inep, autarquia responsável pela organização da prova. O Inep não respondeu aos questionamentos enviados até o fechamento desta reportagem.
A ABMES afirma que as faculdades privadas estão dispostas a mudar o calendário para acompanhar o Enem. "Se houver eventualmente alterações, nós vamos nos adaptar. Não é problema", diz Niskier, que também afirma que as faculdades estão atentas às necessidades diferenciadas de alunos da rede pública em meio à pandemia. "Nós todos entendemos que vivemos um momento extraordinário."