LGBT: a transfobia foi discutida com mais amplitude e chegou a ser, pela primeira vez, tema da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo (Danish Siddiqui/Reuters)
Larissa Moreira
Publicado em 30 de dezembro de 2016 às 16h02.
Neste ano, a chegada de Michel Temer ao poder foi vista pela Bancada Evangélica do Congresso Nacional como oportunidade de avançar com pautas reacionárias, contra os direitos das minorias, como mulheres e LGBT.
Se mesmo antes de o governo Temer começar, a pauta dos direitos de minorias já estava paralisada no fim da gestão petista, com o fim do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, estamos “na contramão do mundo”, como disse em abril em entrevista ao HuffPost Brasil Carlos Magno, presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT).
A criminalização da LGBTfobia, embora permaneça como uma das pautas principais do movimento, parece ter concretização ainda distante. Enquanto isso, a discriminação e a violência continuam sendo a realidade de LGBT brasileiros.
Até julho deste ano, segundo dados do Grupo Gay da Bahia (GGB), 173 assassinatos considerados crimes de ódio foram registrados contra a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.
Apesar do péssimo cenário, 2016 contou com alguns acontecimentos positivos para o movimento. Para levantar alguns deles, o HuffPost Brasil conversou novamente com Magno e, também, com Keila Simpson, presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
A pauta trans teve destaque – a transfobia foi discutida com mais amplitude e chegou a ser, pela primeira vez, tema da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, uma das maiores do mundo.
Veja abaixo os 6 avanços que listamos:
1. A primeira formatura do programa Transcidadania em São Paulo
Em janeiro, a primeira turma de mulheres e homens transgênero do programa Transcidadania, da prefeitura de São Paulo, conseguiu diplomas de formação nos ensinos fundamental e médio.
O Transcidadania oferece bolsas para que pessoas trans estudem. Neste ano, das cem que aderiram ao programa em 2015, 33 concluíram o ensino fundamental, e cinco, o médio.
O programa inspirou um semelhante em Minas Gerais.
2. Mais instituições passaram a aceitar o uso do nome social
O Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) agora reconhecem o nome social de médicos e advogados trans, respectivamente.
Em abril, a então presidente Dilma Rousseff assinou decreto que permite o público trans do funcionalismo público federal usar o nome social nos crachás de trabalho.
Travestis e transexuais dos quadros civil e militar que preferem ser chamados por um pronome diferente daquele que consta em seu registro civil também são atingidos pela medida.
O Colégio Pedro II foi a primeira instituição pública do Rio de Janeiro a comunicar cumprimento do decreto assinado por Rousseff. Em 2014, essa mesma escola tradicional pediu a uma aluna trans que trocasse a saia que usava por uma calça.
Já na região Centro-Oeste do País, a Universidade Federal da Grande Dourados (UFDG) publicou uma resolução que permite o uso de nome social em todos os documentos; trata-se também de um cumprimento do decreto.
Neste ano, o Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) teve 406 candidatos usando o nome social. Segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), desde que o nome social foi liberado no Enem, em 2014, o número de autorizações aumentou em 46%.
3. Campanha governamental pela saúde de pessoas trans
Em janeiro, o Ministério da Saúde, no governo de Rousseff, inaugurou a campanha Cuidar bem da saúde de cada um. Faz bem para todos.
Faz bem para o Brasil, cujo objetivo é proporcionar atendimento humanizado para travestis, mulheres transexuais e homens trans no SUS (Sistema Único de Saúde), conscientizando toda a sociedade, incluindo profissionais da saúde e funcionários sobre necessidades de saúde e direitos das pessoas trans.
“A ampliação do acesso [dessa população] aos serviços de saúde passa pelo respeito ao nome social e pelo enfrentamento à discriminação por identidade de gênero, construída a partir de como a pessoa se reconhece ou se apresenta”, disse na ocasião do lançamento Lenir Santos, então secretária de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde.
Segundo o Portal da Saúde, do governo federal, foram distribuídas 200 mil cartilhas e 100 mil cartazes “para unidades de saúde, secretarias estaduais, conselhos de saúde, Comitês de Saúde LGBT e para os serviços de assistência social e direitos humanos que atendem a essa população nos estados”.
4. A expansão da visibilidade trans
Na Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, em maio, pela primeira vez esse recorte do movimento serviu de pauta da manifestação, com o tema Lei de Identidade de Gênero Já! – Todas as Pessoas Juntas contra a Transfobia!, pedindo a criminalização da transfobia e a aprovação da Lei João Nery, o projeto de lei de identidade de gênero.
A parada do Rio não foi diferente. Com o tema Eu Sou Minha Identidade de Gênero, ela fez as mesmas reivindicações da de São Paulo.
Em outubro, o estilista Ronaldo Fraga fez da São Paulo Fashion Week (SPFW) um espaço de protesto contra a transfobia, colocando 28 modelos trans para desfilar.
Marina Reidel, mestre em educação e ativista trans, tornou-se em dezembro a coordenadora-geral de promoção dos direitos LGBT da Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça e Cidadania do governo Temer.
É a segunda vez consecutiva que uma trans ocupa o posto. Antes, o cargo foi de Symmy Larrat.
Até atriz trans teve espaço na Globo, com a série Supermax. Maria Clara Spinelli fez o maior sucesso no papel de Janette.
5. Mais candidatos LGBT ou aliados nas eleições 2016
Na imagem acima, Amara Moira, que concorreu ao cargo de vereadora em Campinas (SP); ela participou de uma live com o HuffPost – veja aqui
A ABGLT registrou em 2016 o maior número de candidatos do movimento e aliados na disputa por cargos de vereador e prefeito no Brasil: 377.
Foram eleitos 25 vereadores e um prefeito, Wirley Rodrigues Reis (PHS), também conhecido como "Têko", em Itapecerica (MG) eleito com de 57% dos votos válidos.
Além disso, mais de 80 candidatos foram travestis ou transexuais.
6. A primeira cena de sexo gay da televisão brasileira
Depois de muita expectativa, a Globo, mesma emissora de TV na qual o beijo gay foi tabu por muitos anos, exibiu a primeira cena de relação sexual de duas pessoas do mesmo sexo da teledramaturgia brasileira, na novela das 23h, Liberdade, Liberdade, exibida entre abril e agosto.
Tolentino e André, personagens de Ricardo Pereira e Caio Blat, respectivamente, após reprimir por muito tempo o desejo mútuo, enfim o liberaram, expressando o amor que unia ambos.
Parabéns, Rede Globo e equipe de #LiberdadeLiberdade por refletirem a diversidade da vida e as conquistas culturais e políticas de LGBTs!
— Jean Wyllys (@jeanwyllys_real) July 13, 2016
Um longo caminho a ser percorrido
Segundo o presidente da ABGLT, do ponto de vista da política concreta, o movimento trans de fato teve mais avanços, mesmo que a situação ainda esteja “longe do ideal”.
“No Legislativo, a gente está paraliSado. No Executivo, só recentemente ganhamos uma coordenadora. Então a gente aposta muito no Supremo Tribunal Federal”, conta Carlos Magno.
Atualmente, o STF tem quatro ações que, se aprovadas, trarão avanços importantes. Uma equipara a homofobia ao racismo; outra declara omissão do Congresso por não votar o projeto de lei que criminaliza a homofobia; e duas são de gênero, uma para o uso de nome social inclusive para quem não fez a cirurgia e outra é de uma travesti que foi discriminada por uso de banheiro. Esta pode abrir jurisprudência para qualquer pessoa utilizar o banheiro que quiser.
As ações são: o Mandado de Injunção (MI) 4.733, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, a Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) 4275 e o Recurso Extraordinário (RE) 845.779, respectivamente.
O presidente da ABGLT diz que vê com grande preocupação o “cenário que se anuncia tenebroso”, de “grande inconstância política”.
“Há o desmonte de algumas políticas, em especial as de direitos humanos”, diz. “A PEC 55, as reformas trabalhista e da Previdência atacam diretamente a população. A gente vive um desmonte da política no País e o governo não sinaliza perspectiva para 2017.”
“Para não ser tão pessimista, há um crescimento do movimento LGBT em várias esferas. Há grupos no Ministério Público, na OAB, em sindicatos, de mães, nas universidades, na imprensa. Você vê uma turma forte na sociedade que não aceita o discurso conservador e homofóbico. Essa é nossa esperança para resistir ao próximo período.”
Para Keila Simpson, presidente da Antra, vivemos um paradoxo: apesar dos avanços, a discussão de várias pautas está pendente; ainda há muitos assassinatos de transgêneros.
Segundo a ativista, as conquistas mais primárias para a população são tratadas com aversão na sociedade.
Ela diz concordar com a esperança de Magno no Supremo, mas faz uma ponderação.
“O STF faz coisas que o legislador não faz. O Congresso se abstém de sua competência e aí deixa a falha. Então, a Suprema Corte vai lá e toma atitudes, como no caso do casamento igualitário. Mas imagine um País no qual o Supremo tenha que decidir sobre como a pessoa deve usar banheiro! Essas coisas geram tanta polêmica que o STF tem que fazer algo. Se o Legislativo fizer, vai levantar divisões, o projeto vai tramitar, tramitar e tramitar… O Legislativo não legisla para a população trans, o Executivo não executa, e o Judiciário vem e faz algo, mas a instância tem que ser o Legislativo.”
Simpson acredita também que muitas conquistas da população trans são “gambiarras legais” e defende que é essencial denunciar a violência contra a pessoa trans, que está enraizada na sociedade, “que é tão comum”.
A saúde, para a presidente, tem sido a área na qual avanços significativos têm acontecido. Mas o governo Temer não sinaliza apoio à causa.
“As perguntas que não querem calar são: até que ponto a gente dialoga? E dialogar para conseguir o quê? Se todos os avanços que nós conseguimos foi em outro governo [o petista], qual é a proposta do governo atual para nós? Tem que fazer esse debate interno no movimento, para que a gente possa ponderar um pouco mais. Se a gente não retroceder, já está de bom tamanho, porque avançar mais que isso, tenho convicção de que a gente não avança.”
A Antra tem na agenda para o ano que vem ações com municípios e estados, mas as causas são as mesmas.
“O nome social é uma coisa imperiosa”, conta. Além disso, o acesso à educação e trabalho e o diálogo com a sociedade são prioridades.
“A sociedade determina o que é bom ou ruim para o outro. Falta o respeito pelo direito à individualidade. Eu posso decidir fazer o que quiser. O que a gente precisa fazer é respeitar o outro, esperando que a sociedade compreenda que as pessoas são felizes como elas são. Mesmo que eu não concorde, tenho que respeitar. Que a gente possa diminuir essas violências. Que 2017 seja um ano com menos mortes de pessoas trans.”