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Sócio-líder para a Indústria de Consumer e líder para o setor de Agronegócio da Deloitte
Publicado em 16 de setembro de 2023 às 08h08.
Nos últimos meses, dediquei-me à tarefa de prever o panorama global da indústria agroalimentar, refletir sobre as consequências de algumas tendências que já se traduziram em realidade e tentar perceber a origem do fluxo de capitais que entrou na indústria alimentar nos últimos dois a três anos.
A presença de fundos de investimento e private equity na indústria agroalimentar já é bem conhecida. No entanto, a crescente participação dos fundos soberanos é notável não apenas pelos retornos atraentes, mas também pelos aspectos ESG (governança ambiental, social e corporativa) e, em particular, pelas questões de segurança alimentar em seus países de origem: Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Catar importam mais de 90% dos alimentos consumidos e têm a segurança alimentar como agenda e estratégia de governo.
Os Emirados Árabes Unidos estabeleceram a meta de se tornar o país com maior segurança alimentar em 2051, conforme declarado em sua Estratégia Nacional de Segurança Alimentar.
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Nas últimas duas décadas, o número destes fundos aumentou e hoje existem mais de 100 em todo o mundo. Juntos, eles têm 10 trilhões de dólares em ativos – tornando-os a terceira maior economia depois dos EUA e da China, se fossem um país. Esse número deve crescer para 17 trilhões de dólares até 2030. Embora a maioria dos fundos soberanos esteja no nível nacional, há também aqueles no nível subnacional. O estado australiano de Queensland, a Palestina e a cidade de Milão têm um fundo cada.
Alguns desses fundos investem apenas no exterior, outros apenas no mercado interno, enquanto há os que fazem as duas coisas. Os principais setores em que investem incluem energia, tecnologia, saúde, finanças e imóveis. Em suma, os fundos soberanos são tão grandes que a maioria das pessoas provavelmente teve algo a ver com eles em algum momento, porque eles possuem partes de grandes empresas, aeroportos, os melhores times de futebol do mundo e mídias sociais como o X (antigo Twitter). Quem está pagando por isso está ajudando os fundos soberanos a trazer dinheiro para casa.
Em dólares, alimentos e agricultura respondem por apenas cerca de 2% a 3% de todos os investimentos de fundos soberanos. Embora isso possa não parecer muito, é um setor politicamente sensível e estratégico para muitos governos. Contribuir para a segurança alimentar nacional é um papel histórico para esses fundos e crítico para países como Singapura e os Estados do Golfo.
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Pelo menos 42 fundos soberanos investem em alimentos e na agricultura. Eles investem na aquisição e produção de terras agrícolas em larga escala, como laranjais no Brasil, fazendas de gado na Austrália ou fazendas verticais de suínos na China. Outros estão apostando em comerciantes globais de alimentos que enviam grãos, oleaginosas e café internacionalmente. Outros ainda são participações em sistemas de varejo alimentar, como redes de supermercados ou serviços de entrega, e nas tecnologias digitais das quais esses negócios dependem cada vez mais.
Um grupo de atores formam o centro de gravidade dos investimentos agrícolas globais por fundos soberanos. São eles Temasek e GIC, em Singapura; PIF na Arábia Saudita; Mubadala e ADQ nos Emirados Árabes Unidos; QIA no Catar; RDIF na Rússia; e COFIDES em Espanha. Singapura e os Estados do Golfo investem em suas próprias necessidades alimentares como prioridade. O RDIF traz grandes investidores para a Rússia para ajudar a financiar seu setor de agronegócio voltado para a exportação. E o COFIDES financia projetos alimentares em todo o mundo tendo sempre uma empresa espanhola diretamente envolvida.
Muitos empreendimentos de fundos soberanos na agricultura estão ligados à aquisição de terras e água, direta ou indiretamente. Em dezembro de 2022, a ADQ, de Abu Dhabi, que tem 110 bilhões de dólares em ativos, ficou com 167 mil hectares de terras agrícolas no nordeste do Sudão. Ele planeja cultivar gergelim, trigo, algodão e alfafa lá, enquanto constrói um novo porto nas proximidades para enviar as mercadorias.
O Fundo de Investimento Público (PIF) da Arábia Saudita, um dos dez maiores fundos soberanos do mundo em termos de ativos, tem 13,7 bilhões de dólares investidos na agricultura. Possui vários grandes conglomerados do agronegócio focados em pecuária, laticínios e pesca. Em 2021, assumiu 100% do controle da Saudi Agricultural and Livestock Company (SALIC), que atua na produção de carne e cereais no Canadá, Ucrânia, Índia, Brasil, Austrália e Reino Unido. A escala é enorme.
Na Índia, o PIF produz seu básico: o arroz basmati. No Brasil, a carne bovina. Na Austrália, opera 200.000 hectares para pastoreio de ovelhas e compra cordeiro e carneiro diretamente dos produtores. Na Ucrânia, tem 195.000 hectares cultivando trigo, cevada, milho e arroz. A PIF também possui 35% da Olam Agri, uma grande produtora de óleo de palma, e está construindo a maior fazenda vertical em toda a região do Oriente Médio e Norte da África.
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Outro grande jogador é o Qatar. Seu fundo soberano tem na Austrália, por meio de uma participação na Paraway Pastoral Company, cerca de 4,4 milhões de hectares, dedicada à produção pecuária. O fundo permite que o Qatar forneça seus suprimentos de alimentos orgânicos por meio da canadense Sunrise Foods, que opera na Turquia, Holanda, Rússia, Ucrânia e EUA. Ela possui empresas de aves e frutos do mar em Omã e agora está desenvolvendo cadeias de suprimentos agrícolas na África Oriental.
O fundo soberano do Qatar detém 50% da Agrokultura, que opera 200.000 hectares de terras agrícolas na Rússia. Também detém 14% da AdecoAgro com seus 472.862 hectares em produção na Argentina, Brasil e Uruguai. Está agora a entrar no Cazaquistão com os mesmos propósitos – e em concorrência direta com os Emirados Árabes Unidos.
Em geral, meus estudos em torno deste tema apontam as seguintes perspectivas quanto aos investimentos dos fundos soberanos:
1. Diversificação: O agronegócio oferece benefícios de diversificação. É uma classe de ativos com baixa correlação com os mercados financeiros tradicionais, o que pode ajudar a proteger as carteiras da volatilidade do mercado.
2. Considerações de Sustentabilidade e ESG: Muitos investidores estão cada vez mais focados em fatores ambientais, sociais e de governança. Investimentos sustentáveis e responsáveis em agronegócios estão alinhados com metas ESG, incluindo uso responsável da terra, conservação de água e práticas de trabalho éticas.
3. Avanços Tecnológicos: Avanços na tecnologia agrícola, como a agricultura de precisão, biotecnologia e análise de dados, estão melhorando a produtividade e a eficiência no setor que depende fundamentalmente de uma nova agricultura: vertical, integrada e altamente tecnológica – mas com perspectivas totalmente diferentes das praticadas em grandes áreas territoriais.
4. Segurança Alimentar: Fundamental em todo o plano estratégico de países que estão na missão de criar um novo panorama econômico para si. Para isso não basta somente o agro, mas também um plano integrado envolvendo grandes projetos de logística e tecnologia.
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A agricultura pode não ser o setor número um para o qual esses fundos gravitam para gerar riqueza. Mas política, geopolítica e, estrategicamente, a segurança alimentar é uma preocupação central deles e continuará a ser. Cabe ao Brasil saber alavancar a tecnologia aqui existente e aproveitar o momento.