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Trump desafia limites legais ao enviar Guarda Nacional para conter protestos pró-imigração em LA

Em um movimento raro de uso da força dentro do território americano, ordem do presidente abre caminho para disputa entre governo federal e estados sobre controle de tropas

A polícia de Los Angeles ordenou no domingo a proibição de reuniões no centro da cidade (AFP)

A polícia de Los Angeles ordenou no domingo a proibição de reuniões no centro da cidade (AFP)

Agência o Globo
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Agência de notícias

Publicado em 9 de junho de 2025 às 10h17.

Em um movimento raro de uso da força militar em solo doméstico, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ordenou na noite de sábado que o Pentágono enviasse ao menos 2 mil soldados da Guarda Nacional para responder a protestos em Los Angeles, motivados por sua ofensiva contra a imigração.

Trump vem há anos flertando com a ideia de empregar forças militares dentro dos Estados Unidos para conter protestos violentos, combater o crime e perseguir imigrantes sem documentos — algo que assessores o dissuadiram de fazer durante seu primeiro mandato. Entre uma presidência e outra, afirmou que, se voltasse ao poder, tomaria essas medidas mesmo sem o consentimento dos governadores estaduais.

O decreto representa um passo significativo nessa direção, embora ainda não invoque o mais amplo poder que Trump poderia reivindicar. Ainda é incerto como a situação se desenrolará nas ruas — e, possivelmente, nos tribunais.

O que determina a ordem de Trump?

Trump mobilizou tropas da Guarda Nacional sob controle federal. Autorizou o secretário de Defesa, Pete Hegseth, a usar essas forças para proteger agentes de imigração, prédios e operações federais contra interferência de manifestantes. Como justificativa, a Casa Branca citou os recentes protestos contra as ações do ICE (Serviço de Imigração e Alfândega) em Los Angeles.

A ordem prevê o envio de ao menos 2 mil soldados da Guarda Nacional por um período mínimo de 60 dias. Trump também deu a Hegseth a autorização para empregar tropas federais regulares “conforme necessário” para apoiar os trabalhos da Guarda Nacional federalizada.

A Guarda Nacional é composta por forças militares estaduais, em sua maioria compostas por soldados em regime de meio período que mantêm empregos civis. Em geral, o controle da guarda cabe ao governador do estado, que pode acioná-la em caso de desastres ou distúrbios civis. Mas a legislação federal permite, em certas circunstâncias, que o presidente assuma o comando dessas tropas.

Quais serão as regras para a Guarda Nacional?

Ainda não está claro. O professor de direito Stephen I. Vladeck, da Universidade Georgetown, escreveu em uma publicação no Substack que, por ora, os poderes das tropas federalizadas parecem limitados. Após serem deslocadas, elas poderão proteger agentes do ICE e edifícios federais contra ataques de manifestantes, mas não estão autorizadas a realizar batidas migratórias ou patrulhar as ruas da cidade de forma geral.

No entanto, a ordem de Trump não define padrões específicos sobre quando essas tropas podem usar força — como efetuar prisões ou disparar armas — se o governo considerar que um protesto ameaça funcionários, bens ou operações federais.

É importante observar que Hegseth já criticou publicamente advogados militares que, segundo ele, impunham regras “excessivamente restritivas” voltadas à proteção de civis em zonas de guerra. Ele demitiu os principais conselheiros jurídicos militares e, em declarações no sábado e domingo sobre o envio de tropas a Los Angeles, não indicou qualquer intenção de moderação.

Nas redes sociais, Hegseth classificou os protestos contra o ICE em Los Angeles como “ataques violentos de turbas” que tentariam impedir a remoção de imigrantes sem documentos, a quem chamou de protagonistas de uma “invasão”.

Hina Shamsi, diretora do Projeto de Segurança Nacional da União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU), declarou no domingo que “não importa quem esteja com a arma ou que uniforme vista, é importante lembrar que a Constituição, especialmente a Primeira Emenda, se aplica, e a conduta das tropas está sujeita a limites constitucionais rigorosos”.

É legal usar tropas federais em solo americano?

Em geral, não, mas há exceções.

Pelo Ato de Posse Comitatus, de 1878, é ilegal empregar tropas federais para funções de policiamento dentro dos Estados Unidos. Mas o Ato de Insurreição, de 1807, abre uma exceção para situações em que o presidente conclua que “obstruções ilegais, ajuntamentos ou rebelião contra a autoridade dos EUA” tornam “impraticável” a execução da lei federal.

No decreto, Trump criticou os protestos como violentos e alegou que eles ameaçam instalações de detenção imigratória, acrescentando que, “na medida em que protestos ou atos de violência impedem diretamente a execução das leis, eles constituem uma forma de rebelião contra a autoridade do governo dos Estados Unidos”.

Qual base legal Trump usou?

Trump invocou o artigo 12406 do Título 10 do Código dos EUA, que permite chamar membros e unidades da Guarda Nacional ao serviço federal em determinadas circunstâncias, incluindo em caso de rebelião contra a autoridade federal. Mas ele não acionou formalmente o Ato de Insurreição.

O artigo citado não confere, por si só, autoridade para empregar tropas federais da forma como Trump autorizou Hegseth a fazer. Mas ele também mencionou “a autoridade que me confere a Constituição como presidente”, o que pode indicar que o governo acredita ter um poder inerente para usar tropas dessa maneira em solo americano.

Durante a Guerra do Vietnã, o então advogado William H. Rehnquist — que se tornaria juiz da Suprema Corte — argumentou em memorandos que o presidente tinha poder para empregar tropas com o objetivo de evitar que manifestantes antagônicos impedissem funções federais ou danificassem propriedades em Washington D.C. e no Pentágono.

Rehnquist sustentou que esse uso das tropas, com fins protetivos, não violaria o Ato de Posse Comitatus. No entanto, nunca houve uma decisão judicial definitiva sobre isso. Além disso, tanto a capital federal quanto o Pentágono são jurisdições federais, ao contrário dos estabelecimentos privados em Los Angeles onde ocorrem as ações do ICE.

O governador precisa consentir com a presença de tropas federais?

Nem sempre. Mas o uso de tropas federais fora de bases militares para funções policiais em território nacional é extremamente raro, e ainda mais incomum quando feito contra a vontade do governador estadual.

A última vez que tropas federais foram usadas para fins de policiamento interno foi em 1992, quando o presidente George H. W. Bush acionou o Ato de Insurreição para conter tumultos em Los Angeles após a absolvição de policiais acusados de agredir o motorista negro Rodney King. Na ocasião, o governador da Califórnia, Pete Wilson, e o prefeito de Los Angeles, Tom Bradley, solicitaram a intervenção federal.

Presidentes não empregam tropas federais sem consentimento estadual desde os anos da luta pelos direitos civis, quando governadores do Sul resistiram a ordens judiciais de dessegregação escolar.

Durante a campanha presidencial, Trump declarou que, se voltasse à Casa Branca, enviaria tropas a cidades como Nova York, Chicago, Los Angeles e San Francisco mesmo sem solicitação das autoridades locais.

"Vocês veem o que está acontecendo com nosso país, não podemos permitir que continue", disse ele em um comício em Iowa em 2023. "Na próxima vez, eu não vou esperar".

Quais tropas Trump pretende usar?

Ao menos parte das tropas enviadas a Los Angeles vem da Guarda Nacional da Califórnia, mas o escopo exato não está claro.

O governador do estado, Gavin Newsom, parece partir do princípio de que Trump usará a guarda de seu estado. Em comunicado no sábado à noite, ele declarou: “O governo federal está assumindo o controle da Guarda Nacional da Califórnia para enviar 2 mil soldados. Essa medida é deliberadamente provocativa e só vai escalar as tensões.”

No domingo, o Comando Norte dos EUA informou que unidades de uma brigada de combate de infantaria da Guarda Nacional da Califórnia “começaram a ser mobilizadas para a área de Los Angeles, com parte das tropas já em solo”.

No entanto, Trump instruiu Hegseth a “coordenar com os governadores dos estados” — no plural — para identificar quais unidades convocar. Isso pode significar o envio de tropas de estados governados por republicanos para a Califórnia, liderada por democratas, intensificando ainda mais o conflito político.

Outra possibilidade é a ampliação do uso das tropas a outras regiões do país. A ordem de Trump, aliás, não se limita a Los Angeles: ela autoriza ações em “locais onde protestos contra operações de imigração estejam ocorrendo ou tenham probabilidade de ocorrer”.

Hegseth sugeriu nas redes sociais que, caso decida enviar tropas da ativa, uma possível escalada adicional, elas provavelmente seriam fuzileiros navais da base de Camp Pendleton, no sul da Califórnia. Segundo ele, esses militares já estão em “estado de alerta máximo”.

A medida de Trump será contestada na Justiça?

É bastante provável que sim. Mas ainda é cedo, e pouco foi efetivamente implementado até agora. Curiosamente, na manhã de domingo, Trump elogiou nas redes sociais a Guarda Nacional pelo “trabalho bem-feito”, embora ainda não houvesse tropas federalizadas em Los Angeles.

Um possível autor da ação judicial é o próprio governo da Califórnia. O estado teria legitimidade para contestar a medida com base nos direitos federativos, alegando que incidentes isolados de violência, sem sobrecarregar as forças policiais locais, não justificam legalmente o envio de tropas federais.

As declarações públicas de Newsom parecem preparar esse caminho. Ele afirmou que “não há atualmente nenhuma necessidade não atendida” de reforço na segurança. Também pediu que os manifestantes mantenham a paz e “jamais usem violência”, para não fornecer a Trump o pretexto para um “espetáculo”, além de classificar como “comportamento insano” a ameaça de Hegseth de enviar fuzileiros navais.

O artigo 12406 também estabelece que ordens para convocação da Guarda Nacional “devem ser emitidas por meio dos governadores dos estados”, o que pode servir de base legal para que Newsom argumente que a Guarda Nacional californiana só pode ser federalizada com seu consentimento.

Um possível autor da ação judicial é o governo da Califórnia. O estado teria legitimidade para contestar a medida com base nos direitos federativos, alegando que incidentes isolados de violência, sem sobrecarregar as forças policiais locais, não justificam legalmente o envio de tropas federais.e um segundo mandato de Trump.

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