Cannes Lions 2025: premiação que consagrou o Brasil também expôs fragilidades da indústria publicitária diante de escândalo envolvendo manipulação de conteúdo. (Divulgação/Cannes Lions)
Editora-assistente de Marketing e Projetos Especiais
Publicado em 24 de junho de 2025 às 19h31.
Última atualização em 24 de junho de 2025 às 19h56.
CANNES - Na mesma edição em que o Brasil foi eleito ‘País Mais Criativo do Ano’ no Cannes Lions 2025, o mercado publicitário brasileiro se viu no centro de uma crise de imagem que expôs fragilidades do setor. Ao celebrar mais de 100 Leões e uma safra histórica de Grand Prix, uma denúncia anônima apontou indícios de manipulação em um dos cases premiados, reacendendo debates sobre desinformação, uso ético da inteligência artificial e os limites da criação em um segmento que muitos definem como em “modo de sobrevivência”.
A campanha Efficient Way to Pay, criada pela agência DM9 para a Consul e vencedora do Grand Prix — principal prêmio do festival — na categoria Creative Data, passou a ser investigada pela organização após a circulação de um vídeo, ao qual a EXAME teve acesso, que questiona a veracidade do projeto. A denúncia aponta a edição deturpada de trechos de um TED Talk da senadora americana DeAndrea Salvador e de uma reportagem da CNN Brasil, além da possibilidade de a campanha jamais ter sido realizada.
“Não há muito o que discutir do ponto de vista técnico. As alterações feitas no material são visivelmente simples, bastou comparar com as fontes originais — o que torna tudo ainda mais curioso”, diz Carlos Rafael, professor do curso de Ciência de Dados e Negócios da ESPM. “A questão não é técnica, mas ética, humana e empresarial: por que esse material foi inscrito no festival?”.
Embora o Cannes Lions, em tese, reconheça campanhas com impacto real, é de conhecimento geral a prática histórica de criação dos chamados “cases fantasmas”: trabalhos feitos apenas para concorrer em premiações, muitas vezes veiculados de forma simbólica ou pontual, sem integrar a estratégia contínua da marca. “Mas agora isso ultrapassou todos os limites”, lamenta um publicitário brasileiro que atua no exterior.
Ele relata que, logo após o escândalo, viveu um episódio de constrangimento: ao se oferecer para resolver uma demanda da agência em que trabalha, um colega estrangeiro perguntou se agiria no “modo jeitinho brasileiro”. “Já enfrentamos muitos preconceitos. Esse caso piora nossa imagem lá fora e nos deixa sem argumentos.”
Nas últimas horas, pelo menos outras três suspeitas de campanhas falsas, produzidas por diferentes agências, surgiram em grupos especializados do setor. Para Márcio Borges, pesquisador do NetLab da UFRJ, dedicado ao estudo da desinformação digital, quando um videocase modifica uma matéria jornalística e altera deliberadamente a verdade para sustentar uma ideia criativa — e ainda recebe um Grand Prix por isso — quem vence é a desinformação.
“Qual a diferença entre uma fake news e um case adulterado para ganhar prêmio? Nenhuma”, diz Borges, lamentando que o episódio ocorra justamente no ano em que Washington Olivetto, maior crítico da indústria de cases fantasmas, foi homenageado. “Vivemos uma crise ética.”
A Consul, pertencente à multinacional Whirlpool, inicialmente atribuiu a responsabilidade à agência. Questionada sobre o projeto — que alegava oferecer eletrodomésticos eficientes a famílias de baixa renda, pagáveis com a economia na conta de luz —, divulgou novo posicionamento, afirmando não tolerar manipulação ou disseminação de informações falsas e que toma as medidas cabíveis. Até o momento, não esclareceu os detalhes da ação.
“Uma postura omissa”, resume Pyr Marcondes, empresário e jornalista veterano do setor. Para ele, cases “forjados” são prática antiga em vários países, não só no Brasil. “Todos os elos da cadeia — criativos, agências, anunciantes e organização do festival — se beneficiam financeiramente desse sistema, gerando cumplicidade difícil de romper.”
O escândalo é visto por especialistas como a ponta de um iceberg que expõe uma indústria paralela de prêmios, com ramificações que ultrapassam fronteiras nacionais. “Por trás do glamour e das taças de rosé que cercam o Cannes Lions, existe uma engrenagem bilionária, movida por taxas de inscrição, venda de credenciais e todo uma cadeia de serviços estruturada em torno do festival”, diz Marcondes.
Em 2025, o custo para registrar uma campanha variava de €675 a €2.300, conforme a categoria. A organização contabilizou 26.900 inscrições de 96 países. A participação da América Latina cresceu 16%, e o Brasil, uma das maiores delegações, somou 2.736 cases — alta de 32,4% em relação ao ano anterior, atrás apenas dos Estados Unidos. É comum que uma mesma campanha concorra em múltiplas categorias.
Além da disputa criativa, o festival movimenta cifras expressivas com a venda de ingressos. Estima-se que entre 12 mil e 15 mil pessoas frequentam o evento anualmente. Os passes variam entre €5.000 e €8.000, o que pode gerar mais de €60 milhões (cerca de R$ 384 milhões) apenas com credenciais, segundo Roberto Valverde, conselheiro e advisor em fusões e aquisições. Na prática, os custos são ainda maiores, já que incluem também a produção de vídeocases, passagens aéreas, hospedagem, alimentação e, muitas vezes, a contratação de consultorias especializadas na preparação e submissão dos materiais.
O próprio Cannes Lions virou uma empresa, vendida ao grupo Informa por US$ 1,6 bilhão em 2024. “O negócio principal não é só celebrar criatividade — é vender patrocínio, credenciais, visibilidade e espaço no palco para quem banca o jogo”, diz Valverde.
Em 2024, a divisão Informa Festivals, que engloba o Cannes Lions, faturou cerca de £375 milhões (R$ 2,8 bilhões), incluindo eventos derivados, parcerias regionais e iniciativas digitais. Valverde estima que o Cannes Lions responda por 70% a 75 dessa receita — entre £90 milhões e £140 milhões (R$ 675 milhões a R$ 1,05 bilhão).
A corrida por Leões impacta diretamente o mercado publicitário. Premiações frequentemente impulsionam bônus, aumentam salários, justificam honorários, reforçam reputações e atraem talentos e clientes. “Enquanto os Leões fizerem parte da remuneração variável, haverá incentivo para correr riscos”, alerta Flávio Waiteman, fundador e CCO da agência independente Tech & Soul.
Além do prestígio, o reconhecimento em festivais tornou-se ativo estratégico. “Mostra o potencial criativo das agências e fortalece a imagem de CMOs e anunciantes — embora muitas campanhas premiadas em Cannes jamais tenham sido executadas”, afirma Marcos Bedendo, professor da ESPM.
Por isso, é comum que grandes agências mantenham equipes exclusivas para premiações. As holdings usam os troféus como credencial para conquistar clientes e investidores. “Criou-se uma indústria de fabricação de cases”, complementa Fernando Figueiredo.
Fontes ouvidas pela reportagem confirmam que grandes redes atrelam a remuneração de executivos ao desempenho em festivais. “Todos ganham: criativos são promovidos, agências ampliam reputação, holdings atraem contas e anunciantes colhem prestígio”, diz um executivo.
Para Roberto Valverde, Cannes representa um valuation simbólico na publicidade — uma moeda interna usada para justificar aumento de fees e alimentar o ciclo de autopromoção das redes. "Grandes grupos ainda usam o festival como ativo para manter o moral das equipes, especialmente diante de bônus em queda e margens apertadas."
O caso DM9-Consul revela transformações e crises na publicidade global, marcada pelo descompasso entre narrativa e realidade financeira. Em Cannes, David Droga, referência do setor, afirmou que “a indústria está em colapso”. Pyr Marcondes define o momento como “desgovernado” e “dissolutivo”. “Instabilidade financeira, competição com plataformas digitais e uma lógica de premiações que privilegia a aparência sobre a substância criativa refletem essa crise”, diz.
A pesquisa Global Ad Forecast Q2 2025 da empresa de dados WARC reduziu a previsão de crescimento dos gastos globais em publicidade de 6,7% para 6,2%. A análise aponta que o mercado enfrenta tarifas comerciais, incertezas econômicas e mudanças no comportamento do consumidor, com cortes em setores tradicionais e forte crescimento em mídia digital e varejo, exigindo mais agilidade.
Além, claro, do avanço das ferramentas de inteligência artificial, que mudam a forma como as pessoas consomem informação – e, consequentemente, publicidade. A perda de relevância dos buscadores é uma mudança sísmica.
Sam Altman, CEO da OpenAI, afirmou que a IA será capaz de realizar “95% do marketing”, reforçando a mudança profunda também da porta para dentro. “A IA pode produzir milhares de apelos criativos individualizados e ajustar resultados automaticamente”, explica Bedendo, da ESPM.
No Cannes Lions, a tecnologia esteve no centro de grande parte dos painéis e debates, mas poucos deles abordaram questões de ética e regulamentação. Pesquisador do NetLab da UFRJ, Márcio Borges afirma que “não existe regulação hoje, apenas limites éticos e normas criminais sobre uso não autorizado de imagem”.
Para Victor Vieira, head de estratégia da Rise, consultoria de marketing, quando alguém manipula a régua para contar uma história falsa, não apenas quebra regras do festival, mas fere a credibilidade da indústria e compromete a inovação responsável e sustentável.
Em nota publicada nesta terça-feira, 24, a DM9 reconheceu “uma série de falhas na produção e no envio do videocase”. A agência também anunciou a criação de um Comitê de Ética em Inteligência Artificial, com o objetivo de estabelecer diretrizes, promover debates e fomentar o uso responsável da tecnologia.
Como observou um seguidor da agência no LinkedIn, não seria necessário um comitê de ética instalado para sinalizar o risco do caso agora sob investigação. O debate sobre como a inteligência artificial muda indústrias inteiras, como a da publicidade, é rico e profundo. Mas o bom senso necessário para se fazer a coisa certa é o mesmo de sempre.
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