Patrocínio:
Digital generated image of blue and yellow glowing data on black background. (Getty Images/Reprodução)
Redação Exame
Publicado em 7 de setembro de 2025 às 10h00.
Os sistemas de serviços notariais e registrais brasileiros se caracterizam por procedimentos e processos que, embora não se destaquem pela celeridade, objetivam assegurar a organização técnica e administrativa desses serviços. O atendimento a estes procedimentos reflete um compromisso constitucional e legal de garantir a segurança jurídica dos atos praticados, proporcionando ao cidadão a confiança necessária para que suas relações jurídicas sejam formalizadas de maneira adequada e eficaz.
A busca pela segurança e autenticidade das informações e atos jurídicos originários dos cartórios (registro civil, de imóveis, de títulos e documentos, de notas e de protestos) constitui um fundamento basilar da Lei nº 6.015/73 ("Lei de Registros Públicos"). Esse aspecto é especialmente relevante no contexto do registro de imóveis no Brasil, dada a importância desse sistema para as transações imobiliárias.
Nos últimos anos, com o advento das novas tecnologias digitais, observamos uma evolução significativa do arcabouço regulatório brasileiro no campo da tecnologia e da inovação, especialmente no que se refere aos registros públicos, notadamente com a Lei nº 14.382/2022 (Sistema Eletrônico dos Registros Públicos – "SERP"). A legislação contribuiu para a integração dos sistemas eletrônicos já existentes nos serviços notariais e de registro, além de estabelecer diretrizes abrangentes para a digitalização de atos e documentos.
Vale destacar, igualmente, o crescente uso da tecnologia blockchain em diversos segmentos da sociedade e da economia, com especial ênfase para os criptoativos e tokens. O blockchain, enquanto tecnologia de registro distribuído (“distributed ledger technology”), permite o armazenamento seguro, imutável e descentralizado de dados por meio de contratos inteligentes (“smart contracts”). No contexto dos registros públicos, essa tecnologia pode aprimorar a segurança, agilidade e transparência nas atividades de tabeliães e registradores.
Também neste contexto há a tokenização imobiliária, um processo de conversão de ativos imobiliários (e.g. recebíveis de locação, contrato de compra e venda etc.) em ativos digitais. Essa transformação se dá por meio de estruturação jurídica, sendo os tokens lastreados nos direitos decorrentes dos ativos imobiliários convertidos.
Estes tokens digitais podem ser negociados, sendo registrados em blockchain com o objetivo de conferir a esses ativos digitais uma representação legalmente válida e reconhecida. Esse processo visa à democratização do acesso ao mercado imobiliário, permitindo acesso a quem quer que seja, de qualquer lugar do mundo, com um único clique.
Em que pese a mencionada evolução do arcabouço jurídico-regulatório mencionada, ainda não há uma legislação ou regulamentação específica sobre a matéria, levando a entendimentos e procedimentos distintos entre os Estados, por intermédio de suas corregedorias e, especialmente, entre os diversos cartórios do país.
Sobre o tema, recentemente a Corregedoria-Geral da Justiça do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (“TJSC”) emitiu a Circular CGJ n.º 410/2025, que, por meio do Provimento CGJ n.º 43/2025, alterou o Código de Normas do Foro Extrajudicial do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Em síntese, a regulamentação estabelecida pela Corregedoria do TJSC proibiu expressamente aos oficiais de registro a realização de qualquer anotação, averbação ou registro que vincule a matrícula imobiliária a tokens digitais, representações em blockchain ou outros instrumentos extrarregistrais, com ou sem pretensão de representar a titularidade do domínio. Tal novidade foi formalizada pela inclusão do §2º no art. 685 do Código de Normas do Foro Extrajudicial do TJSC.
A fundamentação jurídica que amparou essa vedação vinculou, preponderantemente, a preservação da segurança jurídica dos negócios imobiliários, a proteção contra fraudes e a salvaguarda da competência exclusiva do registro imobiliário, em observância ao artigo 236 da Constituição Federal de 1988.
A decisão da Corregedoria ressalta que, conforme o artigo 1.245 do Código Civil de 2002 (Lei 10.406/02), a transferência de direitos reais sobre imóveis ocorre apenas com o registro perante o cartório competente, sendo a matrícula imobiliária o meio válido para essa efetivação.
Além disso, alega-se que a vinculação da inscrição de atos no registro de imóveis relativos a tokens ou representações extrarregistrais é passível de controvérsias e de questionamentos acerca dos registros públicos, comprometendo os princípios de legalidade, publicidade, especialidade e continuidade do sistema registral, além de favorecer práticas ilegais, como a sonegação fiscal e a lavagem de dinheiro, e prejudicar a rastreabilidade da cadeia dominial.
Um contraponto para o provimento da Corregedoria do TJSC, é o anterior Provimento CGJ-RS nº 038/2021, da Corregedoria-Geral da Justiça do Rio Grande do Sul, publicado em 01 de novembro de 2021, que regulamenta a lavratura de escrituras públicas de permuta de bens imóveis com contrapartida de tokens/criptoativos e o respectivo registro imobiliário pelos serviços notariais e de registro do Estado do Rio Grande do Sul.
Um dos pontos de destaque deste provimento é a indicação de que os tokens/criptoativos não devem representar direitos sobre a propriedade do imóvel. Além disso, estabelece que os registradores de imóveis devem observar tais condições e transcrever as cláusulas pertinentes no ato do registro.
Essa iniciativa da Corregedoria do Rio Grande do Sul reflete o esforço em acompanhar a evolução tecnológicas, supostamente visando assegurar segurança jurídica, transparência e proteção das partes nas transações imobiliárias.
Nesse sentido, há quem defenda a possibilidade de enquadramento de tokens digitais, representações em blockchain ou qualquer outro instrumento, como atos passíveis de registro no registro de imóveis, dependendo de sua estrutura jurídica e lastro (e.g. contratos de locação, compra e venda, cessão ou promessa de cessão), em razão da ampliação da interpretação deste rol dos atos de averbação, com a inserção do item 48, do inciso I do art. 167 da Lei de Registros Públicos, promovida pelo SERP, com o objetivo de atribuir-lhe uma natureza exemplificativa.
Na mesma linha, o art. 246 da Lei de Registros Públicos também estabelece que, além dos casos expressamente previstos no inciso II do caput do art. 167, serão averbadas na matrícula as sub-rogações e outras ocorrências que, de qualquer forma, alterem o registro ou repercutam nos direitos relativos ao imóvel.
Dessa forma, uma análise estrita desses dispositivos permite fundamentar a argumentação de que tokens digitais, representações em blockchain ou outros instrumentos extrarregistrais poderiam ser passíveis de inscrição no registro de imóveis, seja meramente informativa, seja até mesmo envolvendo direitos reais.
As distintas formas regulatórias do sistema possuem como objetivo primordial conferir segurança jurídica às operações. Enquanto algumas dessas abordagens se caracterizam por uma postura mais restritiva, impedindo o acesso registral por completa enquanto não editado um marco regulatório sobre a tokenização, outras adotam uma postura mais permissiva, condicionando o acesso à matrícula ao cumprimento de certos requisitos de segurança.
Em qualquer hipótese, é imperioso que seja criada uma legislação específica que estabeleça diretrizes claras sobre a compatibilidade entre as novas tecnologias e os registros públicos, proporcionando a uniformização do entendimento sobre o tema.
Esta normatização, quer seja elaborada por resolução da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) e/ou BACEN (Banco Central do Brasil), o que é fundamental, quer seja por lei específica, deverá definir os requisitos mínimos necessários para a adequação legal, assegurando a conformidade dos processos tecnológicos com as normas vigentes e a manutenção da integridade do sistema como um todo, incluindo o registro de imóveis.
Qualquer proposta de modificação, inovação ou implementação normativa que vise compatibilizar o sistema de registros públicos com o mercado tokenizado deverá ser submetida a uma análise criteriosa e detalhada de normatização, a fim de criar um arcabouço regulatório claro, específico e uniforme por parte das autoridades competentes (como a CVM, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, e/ou o Congresso Nacional), abrangendo todo o território nacional, a fim de mitigar potenciais riscos oriundos da implementação de novas tecnologias, especialmente no que tange à preservação da eficácia dos atos jurídicos e à manutenção da confiabilidade dos registros públicos.
Olivar Vitale, advogado, sócio fundador do VBD Advogados, presidente da Comissão Especial de Direito Imobiliário da seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil, fundador e diretor do IBRADIM, conselheiro jurídico do Secovi-SP, do SindusCon-SP e da ADIT Brasil, professor e coordenador da ESPM-SP, da Unibradim, da UniSecovi e de outras entidades de ensino, diretor da MDDI (Mesa de Debates de Direito Imobiliário).
*Matheus Silva Reis é advogado da área imobiliária empresarial no escritório VBD Advogados.
Siga o Future of Money nas redes sociais: Instagram | X | YouTube | Telegram | Tik Tok