Patrocínio:
Parceiro institucional:
Colunista
Publicado em 8 de novembro de 2025 às 06h00.
Por Munir Soares*
A trajetória global do financiamento florestal ainda revela uma profunda assimetria entre a ambição declarada e a capacidade real de mobilização de recursos em escala. Para que as metas de clima e biodiversidade sejam alcançadas, será necessário ampliar substancialmente a escala das Soluções Climáticas Naturais (SCN), especialmente no setor florestal. Estima-se que a área global sob proteção e manejo sustentável precise crescer em mais de 1 bilhão de hectares até 2030 e 1,8 bilhão até 2050. Para isso, os investimentos anuais em florestas devem atingir aproximadamente US$ 300 bilhões até 2030 e US$ 498 bilhões até 2050, valores muito superiores aos fluxos atuais, que somaram apenas US$ 84 bilhões em 2023. As SCN podem responder por cerca de um terço da mitigação global necessária até 2030, e o Brasil detém cerca de 20% do potencial global não explorado de tais soluções, figurando entre os quatro países tropicais que concentram mais da metade das oportunidades custo-efetivas do planeta.
A lacuna financeira para a conservação e restauração de ecossistemas tropicais persiste como um dos maiores entraves à transição climática, especialmente diante da intensificação dos eventos extremos e das pressões sobre o uso do solo. No caso brasileiro, o desafio e a oportunidade são proporcionais à dimensão dos ativos naturais do país, que abriga o maior estoque de florestas tropicais do mundo e um potencial inestimável de mitigação de carbono, biodiversidade e serviços ecossistêmicos.
Superar essa lacuna requer uma arquitetura financeira diversificada, capaz de integrar diferentes instrumentos e fontes de financiamento em um mosaico de soluções complementares. Nesse contexto, mecanismos como o Tropical Forests Forever Facility (TFFF), o REDD+ jurisdicional (J-REDD+), os projetos privados de REDD+ sob linhas de base jurisdicionais e as iniciativas de restauração florestal compõem pilares convergentes de uma estratégia nacional de valorização do capital natural brasileiro.
O J-REDD+ foi concebido para recompensar resultados mensuráveis de emissões evitadas ou remoções adicionais, calculadas em toneladas de CO₂ equivalente, com base em linhas de base jurisdicionais que integram projetos públicos e privados. Ao premiar reduções comprovadas, o mecanismo cria incentivos econômicos diretos para a conservação em áreas sob maior pressão de desmatamento e promove o fortalecimento institucional em estados e municípios. Além disso, o J-REDD+ tem papel relevante na consolidação de salvaguardas sociais, como a repartição justa de benefícios e a consulta livre, prévia e informada (CLPI) junto a comunidades tradicionais, conforme previsto na Resolução nº 19/2025 da CONAREDD+.
Os projetos privados de REDD+, por sua vez, continuam sendo instrumentos essenciais de ação descentralizada. Ao mobilizarem recursos privados e conectarem empresas e proprietários rurais a compromissos de descarbonização, esses projetos contribuem para expandir a conservação em escala local, gerar renda e promover o manejo sustentável, especialmente em territórios onde o acesso a políticas públicas ainda é limitado.
Complementarmente, o TFFF surge como uma inovação necessária à estabilidade de longo prazo do financiamento florestal. Estruturado como um fundo patrimonial global, o mecanismo propõe pagamentos contínuos e previsíveis por hectare de floresta em pé ou restaurada, recompensando países e regiões que mantêm altos estoques de vegetação nativa. Trata-se, portanto, de um instrumento de manutenção de capital natural, que valoriza o esforço histórico de conservação e cria condições para sustentar economias locais baseadas na floresta, mesmo em contextos de baixa pressão por desmatamento.
Essa lógica também se estende às iniciativas de restauração florestal, que desempenham papel duplo no mosaico: ao mesmo tempo em que aumentam os estoques de carbono e restauram funções ecológicas críticas, ampliam oportunidades econômicas para comunidades rurais e cadeias produtivas sustentáveis, além de contribuir ativamente para o alcance das metas da NDC brasileira. A restauração, seja via regeneração natural, sistemas agroflorestais ou plantios direcionados, pode ser financiada de forma articulada com o TFFF e o REDD+, compondo um fluxo contínuo entre conservação, redução de emissões e regeneração de ecossistemas.
A coexistência desses mecanismos exige atenção à integridade ambiental e contábil. Como adotam métricas distintas — o J-REDD+ e os projetos REDD+ baseados em toneladas de CO₂, e o TFFF em hectares preservados —, seus fluxos financeiros não podem se sobrepor nem gerar dupla contagem. Por outro lado, podem compartilhar infraestruturas institucionais, como sistemas de monitoramento por satélite, metodologias de verificação, salvaguardas socioambientais e mecanismos de governança, reduzindo custos de transação, ampliando a transparência e valorizando os ativos florestais nacionais.
Esse mosaico também reflete a natureza federativa da política climática brasileira. Enquanto a União pode concentrar esforços no TFFF, com foco na conservação de longo prazo e na manutenção dos estoques florestais, os estados assumem protagonismo na estruturação de programas jurisdicionais de REDD+, articulando resultados em nível territorial e alinhando-se aos planos estaduais de mitigação e adaptação. Já os municípios e comunidades locais desempenham papel central na implementação de projetos e na geração de resultados verificados no campo.
Para capturar plenamente essas oportunidades, o Brasil precisa avançar na construção de arranjos institucionais e políticas públicas integradas que promovam clareza de papéis, coerência entre instrumentos e segurança jurídica para os diferentes agentes envolvidos na agenda florestal. Isso implica alinhar responsabilidades e ações entre os níveis federal, estadual e municipal, de modo a articular mecanismos complementares sob uma mesma estratégia. O momento é propício: a liderança brasileira no desenho do TFFF, o avanço na regulamentação do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE) e o desenvolvimento de concessões públicas para restauro florestal oferecem uma base concreta para integrar iniciativas de conservação e restauração em um marco regulatório estável e previsível. Garantir segurança jurídica na captação de recursos, tanto para projetos privados quanto para programas jurisdicionais conduzidos pelos estados, requer coordenação com as autoridades competentes, transparência nos critérios de elegibilidade e clareza nas atribuições de cada ente federativo, assegurando integridade ambiental, social e contábil nos resultados.
O Brasil tem condições singulares de liderar o desenho de uma nova geração de políticas florestais, baseada na complementaridade entre conservação e restauração. Um mosaico coerente entre TFFF, J-REDD+, projetos privados e restauração não apenas potencializa o valor econômico dos ativos florestais nacionais, como também consolida a floresta em pé como um ativo estratégico do desenvolvimento sustentável brasileiro no século XXI.
*Munir Soares é doutor em Energia e Mudanças Climáticas pela USP, sócio-fundador e CEO da Systemica