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Os Direitos fundamentais têm preço?

É confortável desejar um Estado que garanta tudo, mas é desconfortável aceitar que isso custa caro

O consumidor residencial brasileiro, sem impostos, paga em média 66% do valor total dispendido pelo europeu. (Pekic/Getty Images)

O consumidor residencial brasileiro, sem impostos, paga em média 66% do valor total dispendido pelo europeu. (Pekic/Getty Images)

Instituto Millenium
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Publicado em 16 de maio de 2025 às 19h59.

Por Maria Eduarda Vargas, diretora de Projetos do Instituto Atlantos

 

Na mitologia grega, o rei Midas desejou que tudo o que tocasse se transformasse em ouro. Os deuses atenderam. E de início, Midas se encantou com sua nova capacidade: colunas, vasos, frutas, tudo virava riqueza em estado puro. Mas logo percebeu o custo invisível do milagre, o pão virava pedra dourada, o vinho endurecia na taça, e o abraço de sua filha se tornava frio e letal. O dom se revelou maldição. Midas havia confundido desejo com virtude, e a prosperidade sem medida com justiça.

O mito serve de espelho para o drama fiscal dessa era. A sociedade moderna, guiada por impulsos generosos, passou a converter cada necessidade humana em um direito fundamental. Com uma caneta e um discurso moral, o Estado toca as demandas sociais e as transforma em obrigações constitucionais. Saúde gratuita, educação pública, moradia digna, segurança eficaz, previdência integral. Tudo é prometido, tudo é devido. Mas, como Midas, o Estado começa a perceber que, quanto mais toca, mais se asfixia sob o peso das suas próprias virtudes transformadas em ouro fiscal.

Em uma época em que os direitos fundamentais são exaltados como conquistas irrenunciáveis da civilização — e a maior expressão disso é a Constituição Federal de 1988, concebida como uma Constituição Social — , poucos se perguntam: quem paga a conta? É confortável desejar um Estado que garanta tudo, mas é desconfortável aceitar que isso custa caro.

E custa muito: segundo o IBPT, o brasileiro médio trabalha cerca de 150 dias por ano apenas para pagar impostos. O Brasil tem uma das maiores cargas tributárias do mundo em relação ao PIB, 33,71% em 2023, segundo dados da Receita Federal, e figura entre os países que menos retornam esses valores em serviços de qualidade, ou seja, a garantia dos direitos fundamentais.

Como ensinou José Casalta Nabais, “o dever de pagar tributos é um dever fundamental”, pois é a partir dessa arrecadação que o Estado financiará a, tão famosa, “justiça social”. Quanto mais direitos se pretende garantir, mais recursos são

necessários e uma carga tributária maior, o que faz com que seja urgente refletir e debater sobre justiça, eficiência e responsabilidade fiscal.

Contudo, essa engrenagem já ameaça esmagar a própria ideia de liberdade. O contribuinte brasileiro paga, em média, 46% de impostos sobre o preço da energia elétrica, 56% sobre combustíveis, e mais de 36% sobre alimentos básicos, penalizando especialmente os mais pobres. O dever virou imposição; o tributo, um peso silencioso que financia um Estado que promete muito e entrega pouco.

A sociedade contemporânea parece querer direitos ilimitados sem deveres correspondentes. Deseja-se saúde universal, mas rejeita-se o aumento de impostos. Exige-se educação de excelência, mas condena-se a tributação progressiva. Há, nesse desejo, uma negação infantil da realidade: como se fosse possível haver abundância pública sem sacrifício individual. Esquece-se que o dinheiro que financia o Estado é o mesmo que sai do bolso de cada cidadão — inclusive daqueles mais pobres, que sofrem com a regressividade do sistema. Será que quem idealiza essas políticas já se perguntou quanto custa, na prática, um botijão de gás ou um litro de leite para quem vive com um salário mínimo?

O mais perverso é que, no Brasil, os 10% mais pobres chegam a comprometer até 32% de sua renda com tributos indiretos, enquanto os mais ricos dispõem de brechas legais e benefícios fiscais seletivos. A justiça tributária torna-se uma promessa tão etérea quanto os direitos que a Constituição assegura no papel.

Mas essa constatação impõe outro dever: exigir que o tributo seja justo. Um Estado que tributa muito e entrega pouco destrói o pacto republicano. A corrupção, a ineficiência e o clientelismo são traições a esse contrato. A legitimidade da tributação está na sua reciprocidade: o contribuinte paga porque confia que será devolvido em direitos. Quando essa confiança é rompida, o tributo deixa de ser expressão de cidadania e se torna símbolo de servidão.

A confiança se rompe quando se descobre que o Estado brasileiro destina mais recursos à folha de pagamento do funcionalismo do que aos investimentos em infraestrutura. Agrava-se ao se constatar que grande parte do orçamento é absorvida por despesas obrigatórias enquanto milhões ainda vivem sem acesso a saneamento básico. E se desfaz de vez quando vêm à tona esquemas de corrupção bilionários, como os R$ 2,5 bilhões desviados do INSS, por meio de fraudes estruturadas e sistemáticas reveladas neste ano.

A retórica dos direitos transforma-se, então, em cinismo tributário. O cidadão é convocado a sustentar um sistema que promete inclusão, mas entrega privilégios;

que prega igualdade, mas perpetua castas; que fala em justiça, mas alimenta a injustiça orçamentária.

O desafio está em equilibrar a balança, nem um Estado inexistente que abandona os vulneráveis, nem o Leviatã fiscal que esmaga os produtivos. Entre esses extremos, está a república possível, constituída por um Estado que interfere minimamente na vida privada, porém que garanta a liberdade, segurança pública e dignidade da pessoa humana.

Mas para isso, é preciso parar de dourar o fracasso. O que se vende como “direito adquirido” muitas vezes é apenas dívida futura, repassada à próxima geração em nome de uma moralidade sem cálculo. O Estado de bem-estar sem base fiscal sólida é uma ficção politicamente útil e economicamente insustentável.

O mito de Midas termina com o rei suplicando a Dionísio que retire o dom que tanto desejara. Ele aprende, tardiamente, que nem tudo que reluz é ouro e que o excesso de desejo, mesmo quando travestido de justiça social, pode gerar a escassez mais cruel. Assim também corre o risco de terminar o projeto moderno de Estado, se continuar prometendo sem medir o custo. A cada novo direito prometido sem contrapartida clara, transforma-se o pão comum da política em ouro impraticável.

Será que, como Midas, o povo brasileiro reconhecerá os limites antes que tudo o que toquem em nome da justiça se torne inviável e até estéril? Ou continuarão confundindo boa intenção com boa política, até que o ouro dos direitos fundamentais já não sirva sequer para matar a fome?

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