IA (Longhua Liao/Getty Images)
Instituto Millenium
Publicado em 5 de junho de 2025 às 07h42.
*Raul Kazanowski, advogado na CKA Advocacia e associado do Instituto de Estudos Empresariais (IEE)
A inteligência artificial generativa é uma das tecnologias mais disruptivas do nosso tempo, e naturalmente entrou no radar do Poder Judiciário. Abarrotadas de demandas (o Superior Tribunal de Justiça julgou mais de 1 milhão de processos só em 2024 e chegou ao julgamento do habeas corpus de numeração um milhão, por exemplo), as cortes brasileiras podem ficar tentadas a pensar que a inteligência artificial é a saída para o estoque de processos pendentes.
Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça lançou, em 2025, um “novo motor de inteligência artificial generativa para aumentar eficiência na produção de decisões”, o qual deve ser utilizado pelo tribunal para “geração de relatórios e análise de admissibilidades” recursais. A ideia não se limita aos tribunais superiores, sendo que em diversos estados, como o Rio Grande do Sul, o Rio Grande do Norte e Minas Gerais, a ideia vem se proliferando.
A pretensão é salutar: com uma ferramenta bem calibrada, e pressupondo a existência de ações e procedimentos massificados, é de se esperar que a inteligência artificial atalhe uma parte considerável do trabalho de servidores e magistrados. Além disso, também é salutar que o Poder Judiciário esteja atento às novas tecnologias, buscando implementá-las para melhor prestar a jurisdição.
Todavia, é necessário tomar uma boa dose de cuidado para não se iludir com as promessas da inteligência artificial e esquecer as demais reformas necessárias (há tempos) do Poder Judiciário. Sem outras reformas, o uso da inteligência artificial tem tudo para ser um grande esforço de enxugar gelo.
Primeiro porque, ao mesmo tempo em que a inteligência artificial passa a ser objeto de estudo, desenvolvimento e utilização pelo Poder Judiciário, o mesmo processo ocorre pelo lado dos escritórios de advocacia, com alguns entusiastas tratando a IA como futuro da profissão. Ou seja, se o Judiciário terá ferramentas para revisar, relatar e sugerir decisões, os escritórios as terão ao seu lado para otimizar a análise de casos, a elaboração de petições e a interposição de recursos.
Com efeito, se é possível imaginar a IA generativa como uma forma de diminuir o número de processos parados nos tribunais, também deve-se imaginar a sua utilização pela iniciativa privada como uma forma de aumentar o número de ajuizamentos.
Nesse contexto, é fundamental garantir que o uso de novas ferramentas tecnológicas não resulte em uma substituição indiscriminada de profissionais — sejam servidores, magistrados ou advogados — sem uma avaliação criteriosa dos impactos na qualidade e na efetividade do serviço prestado. Embora a tecnologia represente um avanço importante para o futuro do trabalho em diversas áreas, ainda apresenta limitações relevantes no que diz respeito à humanização, à personalização e à sensibilidade exigidas no âmbito jurídico e judicial. Em segundo lugar, a dura verdade (e que precisa ser encarada prioritariamente) é que a utilização da IA não tem a capacidade de solucionar os principais causadores do grande volume de processos no país.
A começar pela insegurança jurídica, fomentada muitas vezes pelos próprios tribunais superiores, os quais deveriam justamente pacificar os entendimentos e fornecer precedentes sólidos. De que adianta o uso de inteligência artificial se quem opera a ferramenta tem o costume incompreensível de modificar precedentes estabelecidos, e assim fomentar ajuizamentos a esmo?
Além disso, é evidente que o uso da IA não tem como suplantar a falta de amarras processuais efetivas no sentido de que os precedentes sejam cumpridos pelos juízes de primeiro grau e os tribunais estaduais sem que seja necessário recorrer até a última instância. É preciso, portanto, pensar em soluções processuais práticas e eficazes para vedar decisões conflitantes com precedentes estabelecidos (os quais já sofrem com a insegurança jurídica supracitada) e, principalmente, em maneiras de penalizar os magistrados que o fazem.
E, por último (neste texto, mas longe de exaurir a lista de problemas do Judiciário brasileiro), pouco adianta uma ferramenta de melhoria da produtividade se a carreira pública em si é falha em fornecer desincentivos à baixa produtividade dos seus servidores (algo que afeta não só as carreiras do Judiciário, mas também todo o setor público).
Isto é, a utilização da inteligência artificial generativa no cenário judiciário brasileiro não pode ser encarada, nem propagandeada, como a solução para o problema do volume, da lentidão e da (falta de) qualidade das decisões judiciais. Em verdade, se os reais problemas não forem enfrentados, corremos o sério risco de o Judiciário brasileiro virar uma disputa de qual inteligência artificial é mais prolífica (se a dos advogados ou a dos magistrados), em um grande processo de enxugar gelo.