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Mercado de Carbono: O desafio de transformar intenção em realidade

Sem regras claras, metodologias consistentes e instituições que funcionem na prática, a ambição climática pode se perder ao longo do caminho

Fernando Pieroni
Fernando Pieroni

Especialista em parcerias público-privadas

Publicado em 20 de maio de 2025 às 21h10.

O início da operação de um trem movido a hidrogênio no Canadá é um caso interessante sobre as várias dimensões da transição para uma economia de baixo carbono. Trata-se de um processo que exige mais do que inovações pontuais, mas consistência metodológica, critérios transparentes, instituições sólidas, além de legitimidade perante os atores envolvidos. Afinal, depende de uma série de condicionantes – tecnológicas, políticas, econômicas –, cujos avanços e implicações variam muito entre os setores da sociedade, e que, muitas vezes, não são óbvias.

O exemplo em questão é o da empresa ferroviária canadense CPKC, que anunciou sua primeira locomotiva de alta potência movida a hidrogênio. Sem dúvida, um avanço tecnológico em direção a uma operação mais limpa. A empresa chegou a divulgar a novidade em suas redes com a hashtag “#SustainablyDriven” (movido pela sustentabilidade, em tradução livre). Mas existe um detalhe. O trem transporta carvão para a produção de aço, um dos processos industriais com maior potencial de emissão de gases de efeito estufa. A contradição suscitou críticas da comunidade ambientalista: até que ponto se trata de uma verdadeira solução climática? Quais os limites de uma inovação específica diante de cadeias produtivas intensivas em carbono?

Casos como esse ilustram um problema central da transição energética: a adoção de tecnologias pontualmente mais limpas pode ocultar questões estruturais ainda não resolvidas. Foi justamente para lidar com esse tipo de complexidade que, em 2001, foi criado o conceito de escopos 1, 2 e 3 de emissões, pelo GHG Protocol, uma iniciativa internacional que se consolidou como referência para medir, reportar e gerenciar as emissões de gases de efeito estufa no setor privado. A proposta busca organizar essas emissões conforme o grau de controle que a empresa tem sobre cada uma delas.

O escopo 1 diz respeito àquilo que a própria empresa emite diretamente no desempenho de suas atividades, como, por exemplo, os gases originados do combustível usado em seus veículos ou processos produtivos. O escopo 2 envolve a energia que a empresa compra e consome, como a eletricidade usada para manter escritórios e fábricas funcionando. Neste caso, mesmo que a poluição não saia de sua chaminé, ela foi gerada em algum lugar para produzir a energia por ela consumida. Já o escopo 3 é o mais amplo e difícil de controlar, pois abrange emissões indiretas da cadeia produtiva e do ciclo de vida dos produtos.

No caso do trem canadense, por exemplo, a combustão do hidrogênio é benéfica pois produz água como subproduto. Mas os benefícios reais dependem de como essa energia é gerada. O Canadá tem mais de 70% de sua eletricidade originada de fontes limpas, mas em outros lugares esse suprimento poderia ser gerado por térmicas poluentes, o que simplesmente deslocaria a emissão de lugar. No caso da siderúrgica, a despeito de utilizar um transporte mais limpo para seus insumos, não houve avanços na sua principal fonte de emissão, o processo produtivo, que continua dependente do carvão.

Essas ambiguidades são justamente o tipo de desafio que o Brasil enfrentará ao implementar o próprio mercado de carbono. A regulamentação da Lei nº 15.042/24, que estabelece as bases para o mercado regulado de carbono no Brasil e institui o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões

(SBCE), deverá lidar com nuances semelhantes. No modelo adotado, serão definidos tetos máximos de emissões para setores econômicos, autorizando que as empresas negociem permissões de emissão dentro desses limites. A lógica é simples: quem polui menos pode vender suas licenças excedentes a quem ultrapassou sua cota, criando um mercado que combina metas ambientais com incentivos econômicos e premia a eficiência na redução global de emissões.

Já se pode imaginar o quão complexo tem sido – e continuará sendo – o processo político para definição desses tetos, que impactam diretamente a competitividade dos setores regulados. Mas a questão vai além. Para que o sistema funcione, é essencial uma metodologia clara e transparente, que defina os escopos considerados, os critérios adotados para mensuração de emissões, entre outros parâmetros. Um enorme desafio diante da diversidade de setores da economia brasileira. Todo esse processo ainda dependerá de instituições capazes de coordenar a política, regular o mercado e validar as metodologias utilizadas, além do envolvimento do setor financeiro no desenho e na operação do mercado, garantindo integridade na precificação e credibilidade nas transações. Enfim, um caminho necessário, mas longe de ser trivial.

O governo brasileiro apresentou um plano de implementação com etapas até a plena operação do mercado regulado de carbono, o qual, entretanto, tem sofrido críticas pela falta de urgência diante da emergência climática e das metas de redução de emissões determinadas pelo Brasil em compromissos internacionais. Há também uma preocupação recorrente com os setores escolhidos pela política, já que os principais emissores, como a agropecuária e atividades relacionadas à mudança do uso do solo, ficaram de fora, ao menos nesta fase inicial, do escopo obrigatório do sistema.

Enfim, temos um caminho longo pela frente para transformar intenção em realidade, e é essencial que a sociedade acompanhe de perto esse processo para que instituições, regulação e incentivos sejam bem desenhados e efetivamente funcionem em favor do interesse público. Afinal, o que está em jogo não é apenas a performance ambiental das empresas, mas a credibilidade da política climática nacional e o compromisso coletivo com um futuro mais seguro, justo e sustentável.

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