Repórter
Publicado em 17 de junho de 2025 às 20h48.
Pesquisadores de diversas partes do mundo têm manifestado preocupação com a possibilidade de que a criação de bactérias sintéticas, uma área emergente da biotecnologia, possa representar uma ameaça significativa à vida no planeta.
Em um evento realizado recentemente em Paris, especialistas pediram uma ação coordenada entre países para impedir a criação de organismos conhecidos como "vida espelhada" — micróbios fabricados que poderiam ter consequências devastadoras para os ecossistemas naturais e a saúde humana, informou o jornal Financial Times.
A principal preocupação é que esses micróbios, desenvolvidos a partir de alterações no fenômeno natural da quiralidade, poderiam driblar as defesas imunológicas dos organismos vivos. "Um futuro organismo espelho poderia se tornar uma espécie invasora amplamente difundida, perturbando ecossistemas críticos e representando uma ameaça potencialmente existencial", afirmou David Relman, microbiologista da Universidade Stanford, durante a reunião.
O conceito de "vida espelhada" decorre de um princípio químico identificado no século XIX por Louis Pasteur, que descreveu a quiralidade — a capacidade de uma molécula existir em duas formas que são imagens espelhadas uma da outra. Essa particularidade poderia ser usada para criar organismos cuja estrutura química seja alterada de forma a enganar o sistema imunológico dos seres vivos, permitindo sua proliferação sem ser reconhecida como ameaça.
A possibilidade de criar micróbios de "vida espelhada" foi discutida de forma aprofundada por especialistas, que afirmam que a criação desses organismos poderia comprometer sistemas de biocontenção, já que o risco de falhas humanas ou de mau uso dos laboratórios é elevado. John Glass, especialista em biologia sintética, alertou para a gravidade dessa questão: "Unidades de biocontenção são vulneráveis a erro humano ou ao uso indevido deliberado. Uma falha seria inaceitável devido ao risco sem precedentes representado por esses organismos."
A história já registrou impactos significativos de mudanças quirais, como o caso da talidomida nas décadas de 1950 e 1960. A droga, em uma de suas formas quirais, foi utilizada para aliviar enjoo matinal em gestantes, mas a outra forma causou sérios defeitos congênitos. Mais de 10 mil vítimas nasceram com malformações devido a essa substância, demonstrando os efeitos potenciais de alterações quirais em organismos biológicos.
Com o avanço da biotecnologia e a capacidade crescente de modificar organismos vivos, a possibilidade de criar micróbios espelhados está se tornando uma realidade cada vez mais tangível. Especialistas preveem que essas bactérias manufaturadas podem se tornar viáveis dentro de 10 a 30 anos, utilizando tecnologias como a edição genética e a criação de células sintéticas a partir de componentes não vivos.
Esse cenário preocupa tanto cientistas quanto governantes, que reconhecem a necessidade de regulamentar mais rigorosamente as pesquisas envolvendo biologia sintética. A recente revisão estratégica de defesa do Reino Unido, por exemplo, alerta para os riscos de novos patógenos surgirem a partir dessa área de estudo. Nos Estados Unidos, a pesquisa de "ganho de função", que visa aumentar a virulência de patógenos, tem gerado debates intensos, especialmente após a pandemia de Covid-19.
A comunidade científica tem buscado discutir os riscos da "vida espelhada" com organizações internacionais, como a ONU, e espera que o evento de Paris resulte em recomendações que orientem futuras regulamentações sobre o tema. A iniciativa é vista como um passo necessário diante da crescente capacidade humana de modificar organismos vivos, uma tecnologia que precisa ser tratada com extrema cautela, de acordo com a professora Filippa Lentzos, do King's College London.