Energia nuclear pode ser fonte estratégica (DongFunStock/Getty Images)
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Publicado em 11 de junho de 2025 às 10h00.
Por Joyce Mendez, Ana Karolina Morais da Silva e Osman Cesar Granada Galvis*
Em meio à disputa internacional por protagonismo na transição energética, os países do BRICS avançam com uma iniciativa estratégica: a criação de um sistema internacional dedicado ao uso pacífico da energia nuclear. A Plataforma de Energia Nuclear dos BRICS, criada para promover o intercâmbio técnico e político sobre o uso pacífico da energia nuclear, ganha força ao propor um modelo de governança multipolar, com foco em tecnologias emergentes e desenvolvimento sustentável.
Com mais de 70% dos novos reatores nucleares sendo construídos no Sul Global, a energia nuclear se apresenta hoje como uma das principais ferramentas para garantir acesso a energia estável, limpa e de baixa emissão de carbono. Segundo dados da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica), o uso dessa tecnologia já evita a emissão de cerca de 1,5 bilhão de toneladas de CO₂ por ano no mundo. Isso equivale a retirar da circulação, por um ano inteiro, cerca de 320 milhões de carros movidos a gasolina — quase a frota total de veículos leves dos Estados Unidos.
A discussão vai além. A energia nuclear também se mostra fundamental em áreas como medicina, agricultura e indústria, ampliando o impacto positivo sobre o desenvolvimento nacional e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Os exemplos são muitos: de isótopos usados em tratamentos contra o câncer a técnicas de radiação para esterilizar pragas na agricultura, garantindo a segurança alimentar.
Somando-se à dimensão tecnológica, a Plataforma assume uma função geopolítica: desafia o modelo tradicional das agências internacionais do setor, muitas vezes centradas em interesses do Norte Global. Propõe, por exemplo, modelos alternativos de financiamento para reatores nucleares em países em desenvolvimento, muitas vezes fora das linhas de crédito de instituições multilaterais tradicionais como o Banco Mundial ou a Agência Internacional de Energia.
O grupo — que reúne Brasil, China, Rússia, África do Sul, Irã, Egito e outros parceiros — defende a energia nuclear como vetor de estabilidade energética. A proposta se torna ainda mais relevante quando confrontada com o cenário de desigualdade energética mundial. Dados do Global Carbon Project, de 2023, mostram que o Norte Global responde por mais de 75% das emissões históricas de CO₂, enquanto os emergentes lidam com os piores impactos da emergência climática e do acesso limitado à energia. Nos Estados Unidos, o consumo per capita de eletricidade é 25 vezes maior que em países da África Subsaariana, segundo dados do Banco Mundial.
Nesse sentido, a Plataforma Nuclear opera como um espaço horizontal de cooperação técnica entre países com interesses e desafios semelhantes, em um movimento de reposicionamento estratégico do Sul Global na política climática internacional e busca afirmar o protagonismo técnico-científico dos BRICS em temas de alta complexidade, como descarbonização de setores difíceis— como a indústria pesada, o transporte de longa distância e a geração despachável de energia.
A plataforma também aposta em alternativas aos modelos tradicionais de financiamento. Soluções como blended finance (modelo de financiamento que combina recursos públicos e privados para viabilizar projetos de alto impacto com menor risco para investidores), consórcios regionais e acordos bilaterais são vistos como ferramentas viáveis para reduzir o custo do capital e atrair investimentos. O objetivo é construir caminhos que permitam o avanço da energia nuclear sem a dependência de grandes operadores globais ou regras impostas por fora.
Um dos focos da plataforma são os reatores nucleares modulares de pequeno porte (SMRs), considerados chave para expandir o acesso à energia limpa em regiões com infraestrutura limitada – justamente o tema central dos acordos de cooperação que o Brasil deve assinar com a Rússia — único país no mundo com SMRs em operação comercial. O potencial para o Brasil é enorme. Detentor da 7ª maior reserva global de urânio, tem apenas 26% do subsolo mapeado geologicamente.
Além disso, é justamente em países com vastos territórios e déficit de infraestrutura, como o Brasil, que os SMRs se apresentam como solução viável para substituir termelétricas a óleo, reduzir emissões e garantir fornecimento estável em regiões isoladas.
Após uma reunião inaugural na China, em que foi aprovada a criação da plataforma, e outra no Rio, durante a conferência NT2E, em maio, a Plataforma volta a se reunir em Brasília durante o VII BRICS Youth Energy Summit, entre 8 e 10 de junho. O tema não poderia ser outro: discutir os desafios e as oportunidades para a adoção dos SMRs em países do Sul Global. A programação do evento inclui ainda debates sobre soluções conjuntas de financiamento — um dos principais gargalos da cadeia nuclear nos países em desenvolvimento.
A aposta é clara: tornar a energia nuclear — por vezes marginalizada em debates climáticos — um vetor legítimo da transição verde, articulado com justiça climática, inovação e desenvolvimento sustentável. E, sobretudo, recolocar os países do Sul Global como formuladores, e não apenas receptores, de soluções para o futuro da energia.
*Joyce Mendez é cofundadora e diretora de projetos do Observatório Latino-Americano de Geopolítica da Energia e ex-conselheira jovem para o clima do Secretário-Geral das Nações Unidas (2023–2024)
Ana Karolina Morais da Silva é doutoranda em Relações Internacionais no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI/USP).
Osman Cesar Granada Galvis é pesquisador do Observatório Latino-Americano de Geopolítica da Energia e mestrando em tecnologia nuclear no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN).
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