Agência de notícias
Publicado em 29 de junho de 2025 às 08h35.
Há mais de dois séculos, o francês François Xavier Tourte — considerado um dos maiores fabricantes de arcos para violinos da História — descobriu uma árvore nativa da Mata Atlântica que reunia a combinação perfeita de dureza e flexibilidade para a confecção de suas peças: o pau-brasil. Desde então, a exploração e o contrabando da espécie ganhou novos arranjos e objetivos comerciais. Levantamento obtido pelo GLOBO mostra que, entre 2002 e 2022, empresas que burlaram fiscalizações ambientais no Brasil lucraram quase R$ 1 bilhão.
Um dos casos mais recentes envolveu a Arcos Brasil que, segundo o Ibama, foi autuada em 31 de dezembro de 2024. A empresa tinha notas de venda de quase 50 mil arcos. Destes, cerca de 57% eram vendidos à Arcos Brasil USA, nos Estados Unidos. Ao GLOBO, o dono da empresa, Celso de Mello, apresentado como um dos fundadores da filial americana no site da Arcos Brasil, alegou que não tem lojas no exterior.
Durante uma inspeção em 2022, o Ibama constatou, no depósito da Arcos Brasil, 0,969 m³ de madeira cerrada em ripas de pau-brasil. Para se ter uma ideia, postas lado a lado, encheriam uma caixa d’água de mil litros. Também foram encontradas 77.352 varetas da mesma essência, sem licença válida para o período de armazenamento. As multas totalizaram, segundo o Ibama, R$ 23,2 milhões. A empresa já havia recebido uma multa de R$ 8,2 milhões em 2018, quando recorreu.
A Arcos Brasil afirmou em nota ao GLOBO que não houve autuação em dezembro e que seu estoque de madeira, adquirido entre 1997 e 2001, foi regularizado pelo Ibama no sistema DOF (Documento de Origem Florestal) em 2006. Segundo a empresa, inspeções entre 2007 e 2014 confirmaram a origem legal da madeira. Sobre a autuação de 2018, disseram que o Ibama apontou excesso de 18 mil varetas e aplicou multa de R$ 8,2 milhões. A Arcos contestou o cálculo com apoio do Itufes (Instituto de Tecnologia da Universidade Federal do Espírito Santo), que apontou erros no fator de conversão usado pelo Ibama e tamanho amostral inadequado. Atualmente, a empresa afirma trabalhar com ipês, adquiridos legalmente em 2023 via sistema DOF + Rastreabilidade.
As investigações ganharam força em 2018. Um ano depois, o Ibama revelou como funcionavam os esquemas que fraudavam o sistema de controle ambiental. A descoberta ocorreu durante a Operação Dó-Ré-Mi, deflagrada no Espírito Santo, em Minas Gerais, em São Paulo e no Rio, e resultou na apreensão de mais de 292 mil varetas e arcos musicais. Ao menos 16 empresas foram autuadas a pagar quase R$ 100 milhões em multas.
Embora a legislação brasileira permita a exploração do pau-brasil com origem legal comprovada, o Ibama revelou que os envolvidos justificavam seus estoques com material sem serventia e utilizavam documentos oficiais adulterados, o que garantia aparência de legalidade. Analista do Ibama, Felipe Guimarães explicou que embora existam outras ameaças ao pau-brasil, a indústria de archeteria — que fabrica arcos para instrumentos musicais — é a que mais contribui para a extinção da espécie.
— O pau-brasil extraído ilegalmente, hoje em dia, não tem outra finalidade industrial para além da fabricação dos arcos — explicou Guimarães.O analista do Ibama explica que ao armazenarem madeiras inúteis — que por terem falhas já não atendiam às exigências do mercado internacional e, por vezes, sequer eram pau-brasil —, as empresas faziam volume nos seus estoques e, quando chegava material novo, adquirido de pequenas serrarias no interior da Bahia, queimavam parte do que não servia para manter a contabilidade aparente.
A cadeia criminosa incluía extratores que atuavam dentro e fora de áreas de conservação natural, intermediários que transformavam as toras em varetas e transportadoras que abasteciam o mercado.
Outro alvo da operação foi a Comercial Rofri, localizada em Aracruz, no Espírito Santo. A empresa recebeu em 2020 uma multa de R$ 11,9 milhões pelo armazenamento irregular de 26.489 varetas de pau-brasil. A empresa conseguiu uma licença em 2005 para o uso de estacas de cerca e utilizava este documento para transportar as varetas da Bahia. A reportagem tentou contato com a empresa por diferentes meios, mas não obteve retorno.
Em novembro de 2021, a Polícia Federal deflagrou a Operação Ibirapitanga, um desdobramento da Dó-Ré-Mi, com base nos dados do Ibama. Na ocasião, foram realizados 20 mandados de busca e apreensão e lavrados 12 autos de infração por falta de licenciamento ambiental.
A partir de 2022, a PF passou a intensificar a atuação em outra frente de combate ao tráfico de pau-brasil: os aeroportos. A agente federal Stela Assumpção conta que apreensões importantes nos aeroportos internacionais de Guarulhos (SP) e Tom Jobim (RJ) impediram a exportação ilegal para a Europa de mais de cem arcos e quase 200 varetas. Somente uma das cargas era avaliada em R$ 300 mil. Os portadores foram multados e indiciados por contrabando e crime contra o meio ambiente.
Um levantamento feito por Guimarães, com dados referentes aos anos de 2002 a 2022, mostra que empresas que maquiavam a origem de seus materiais declararam oficialmente a venda de 464.505 varetas e 7.986 arcos no mercado interno — o equivalente a cerca de 70 m³ de madeira, suficientes para encher dois caminhões de médio porte.
No mercado externo, os registros apontam a exportação de 45.163 varetas e 131.232 arcos, ou 25 m³ de madeira. No entanto, esse volume representa apenas a parte aproveitável da matéria-prima.
— Para cada vareta útil, cerca de 20 são descartadas — explica o agente do Ibama.
Seu levantamento mostra que os principais destinos das exportações brasileiras de arcos são os Estados Unidos (49%), Bélgica (25%) e Japão (8%), seguidos por Alemanha e outros países da Europa e da Ásia.Guimarães constatou ainda que, entre 2002 e 2022, as empresas declararam aproximadamente R$ 86,7 milhões em vendas desses produtos. Mas ele afirma que esses números estão longe da realidade:
— O mesmo arco que sai com nota de R$ 500 no Brasil é vendido por R$ 5 mil, ou muito mais no exterior. Eles declaram valores baixos para não ultrapassar o teto de arrecadação das pequenas e médias empresas e evitar tributação mais alta.
A estimativa de Guimarães é que o volume financeiro movimentado “transvestido de legalidade”, que leva em consideração o subfaturamento, seja dez vezes maior, o que representaria R$ 860 milhões nas duas décadas. Ele reforça ainda que “o levantamento não considera as vendas de produtos não declarados”, como os que foram apreendidos nos aeroportos, e que "provavelmente o valor é muito maior".
Na última quarta-feira, o Itamaraty, em conjunto com o Ibama, aprovou o envio de uma proposta para incluir o pau-brasil no Anexo I da Convenção Cites (Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Silvestres Ameaçadas de Extinção), buscando proteção máxima à espécie, atualmente listada no Anexo II, que permite comércio controlado. A proposta, que será votada na próxima conferência da Cites no Uzbequistão, entre 24 de novembro e 5 de dezembro, visa restringir a comercialização apenas a madeiras pré-convenção (anterior a setembro de 2007) ou de plantios legalizados, com rigorosa comprovação de origem.