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Publicado em 10 de setembro de 2025 às 08h17.
Ao defender ontem a condenação dos réus do núcleo crucial da trama golpista, os ministros Alexandre de Moraes e Flávio Dino marcaram posição em um dos principais debates jurídicos que permeiam o julgamento na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF). Para o relator da ação, que foi seguido por Dino, os crimes de abolição do Estado Democrático de Direito e o de golpe de Estado são autônomos e distintos entre si, o que impede a absorção de um pelo outro, como as defesas dos réus têm argumentado. No passado, o ministro Luiz Fux já manifestou avaliação contrária, o que indica que o tema deverá ser foco de debate entre os magistrados nos próximos dias.
Chamada de consunção, a regra da absorção evocada pelos advogados de defesa é aplicada quando são identificados dois tipos penais nas condutas dos acusados e um deles serve de etapa ao outro. Nesses casos, o crime fim prevalece para evitar duplicidade de punições:
"A absorção acontece, por exemplo, quando um crime é meio para a prática de outro. Alguém falsifica um recibo médico para diminuir o imposto de renda. Ele vai ser processado por sonegação ou falsificação? A jurisprudência é que será processado apenas por sonegação, e a fraude é absorvida", explica o professor de Direito Penal da FGV-Rio, Thiago Bottino, que ressalva: "A ideia do crime meio e do crime fim não vai ter uma única solução".
No entendimento de Moraes, a aplicação da consunção na trama golpista não se sustenta, pois os tipos penais de abolição do Estado Democrático de Direito e o de golpe de Estado, dispostos nos artigos 359-L e 359-M do Código Penal, protegem aspectos distintos. O primeiro trata de condutas que visam tentar impedir ou restringir “o exercício dos poderes constitucionais”, enquanto o segundo envolve iniciativas para derrubar eleitos para chefiar o Poder Executivo.
"Uma coisa é atentar contra o funcionamento das instituições democráticas. Como eles (os envolvidos na trama golpista) fizeram isso? Com uma campanha de desacreditação da Justiça Eleitoral, ataques a ministros, chamando embaixadores para dizer que o processo eleitoral não é confiável", avalia Bottino. "Os atos para depor o governo são outras situações: a reunião com os chefes das Forças Armadas, a Operação Punhal Verde Amarelo, que visava matar o presidente e o vice eleitos".
O ministro citou episódios da história brasileira para exemplificar a distinção entre os dois artigos penais. A chamada “Noite da Agonia” de 1823, quando Dom Pedro I dissolveu a assembleia que elaborava a constituição, seria um caso de abolição do Estado Democrático de Direito. Já a Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas contra o governo de Washington Luís e a posse de Júlio Prestes, configuraria golpe de Estado.
"A minuta do golpe visava tentar abolir o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), substituindo-o por uma comissão política. Claramente, assim como na “Noite da Agonia”, é o 359-L. Se formos para o Golpe de 30, que alguns chamam de Revolução de 30, seria tipificado no 359-M", disse Moraes. "Tanto no primeiro caso quanto no segundo, obviamente por terem sido consumados, jamais qualquer pessoa foi responsabilizada".
Em seguida, ao citar a ditadura militar, Moraes deu outro exemplo: a deposição de João Goulart em 1964 seria um golpe de Estado, e os atos institucionais que fecharam o regime nos anos seguintes se encaixariam como abolição do Estado de Direito. Ele mencionou o AI-2, que aumentou o número de ministros do STF para diminuir a independência do Judiciário, o AI-5, que submeteu o Legislativo ao Executivo, e a aposentadoria compulsória de ministros do Supremo em 1969.
"A abolição não necessita de um golpe de Estado para ocorrer, assim como este independe de restrições aos outros poderes. Inclusive, é possível ter um golpe de Estado no qual os outros poderes continuem a ser exercidos. É uma situação complexa, mas esses crimes não passam um pelo outro com uma relação de interdependência. Eles têm uma relação de exterioridade, mas há uma reverberação", comenta o professor de Direito Penal da Uerj, Antônio José Teixeira Martins.
Colega de Moraes na Primeira Turma, o ministro Luiz Fux, por sua vez, tem entendimento diferente e já defendeu em decisões anteriores a absorção do crime de abolição do Estado Democrático de Direito pelo golpe de Estado, sendo o primeiro ato executório do segundo. “As circunstâncias que tipificam os crimes não são autônomas quando ocorrem no mesmo contexto fático, podendo-se falar, até mesmo, em relação de subordinação ou dependência entre os tipos penais”, escreveu Fux ao julgar ações do 8 de Janeiro.
Caso a tese do ministro, que é minoritária na Corte, seja acolhida, pode ter reflexos no cálculo da pena dos envolvidos na trama golpista.
"Se um crime absorve o outro, você responde apenas por um deles, o que prevalece. Não se teria a pena somada pelos dois crimes", diz Martins.