A sensação de abandono institucional, o medo de retrocessos econômicos, a violência urbana e a degradação dos serviços públicos alimentam o desejo por soluções simples e rápidas (Welber Osti/Agência F8)
Redação Exame
Publicado em 22 de julho de 2025 às 16h43.
Por Marcos Calliari, CEO da Ipsos no Brasil
O momento global é de pessimismo – hoje, 63% acreditam que seu país está no rumo errado. A ideia de que "a sociedade está deteriorada" deixou de ser um comentário lamentoso de fim de conversa. É, hoje, a percepção de 56% das pessoas em 31 países pesquisados pela Ipsos na nova edição do Ipsos Populism Report 2025. No Brasil, esse número é bem maior, chegando a 69%, sete pontos acima de 2023.
Não se trata apenas de uma crise de opinião. Trata-se de uma crise de convicção. Não é apenas o que se pensa sobre a política, mas a própria fé na capacidade do sistema de entregar resultados e representar seus cidadãos. As pessoas não estão apenas descontentes com os resultados da partida; elas não acreditam mais no jogo. E isso muda tudo. Em vez de buscar aperfeiçoar a democracia, cresce o desejo por um atalho às penosas potenciais soluções, lentas e imperfeitas, de preferência, algo ou alguém que prometa eficiência, ordem e um senso de “nós contra eles”. É nesse terreno que o populismo floresce.
O cansaço com o sistema virou combustível para a ruptura
A pesquisa mostra que um sinal claro de desesperança com o sistema é a percepção da economia: 68% das pessoas acreditam que a economia é manipulada para beneficiar os ricos e poderosos. Em linha com essa percepção, outros 64% dizem que os políticos tradicionais não se importam com “pessoas como eu”. E quase metade (47%) deseja um líder forte, disposto a quebrar as regras para colocar o país nos trilhos.
No Brasil, esse número sobe para 58%. E se olharmos para o recorte da população que acredita que “o país precisa ser retomado das mãos da elite”, saltamos para 71%. Ou seja: o populismo não é apenas uma preferência eleitoral. É um desejo de ruptura e uma cartada que equilibre essa percepção de disputa.
Mas o ponto central aqui é entender o que alimenta esse desejo. Porque ele não nasce de um vazio, nasce de uma frustração legítima. A desigualdade persistente, a sensação de insegurança econômica crônica, a ineficácia dos serviços públicos, a impunidade institucionalizada… tudo isso gera uma fadiga democrática.
E a resposta a essa fadiga, cada vez mais, tem sido o populismo, com seus atalhos, seus inimigos fáceis e sua promessa de redenção. Um modelo de política que oferece, em vez de mediação e compromisso, conflito e simplificação.
De Washington a Varsóvia, de Roma a Brasília: O DNA populista se adapta, mas não desaparece
O populismo, embora muitas vezes associado ao trumpismo nos Estados Unidos, está longe de ser um fenômeno exclusivamente americano. Ele é global e multifacetado. Em cada canto do mundo, veste uma roupa diferente, mas carrega o mesmo roteiro: prometer resgate, personalizar o poder e antagonizar o sistema.
Sua força se manifesta em locais tão diversos quanto os Estados Unidos, onde voltou com força à Casa Branca, mas encontra ecos visíveis na Europa Central, no Leste Europeu, na América Latina e até em democracias consolidadas da Ásia. A pesquisa da Ipsos mostra nuances interessantes nesse cenário. Em países como Polônia e Hungria, por exemplo, o apoio a líderes que concentram poder e rompem com instituições tradicionais se mantém alto, sustentado por discursos nacionalistas e conservadores. Já em países como França e Itália, onde o populismo já passou pelo teste do governo, esse apoio vem diminuindo progressivamente, indicando um esgotamento da promessa populista.
No Brasil, esse movimento se intensificou a partir de 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro, cuja campanha e governo replicaram elementos centrais da cartilha populista global: a rejeição às elites políticas, o ataque à imprensa, a militarização do discurso e a divisão moral entre “cidadãos de bem” e “inimigos da nação”. Era a versão tropical de uma lógica internacional.
Hoje, em 2025, vemos que o pano de fundo que permitiu essa ascensão continua presente. A sensação de abandono institucional, o medo de retrocessos econômicos, a violência urbana e a degradação dos serviços públicos alimentam o desejo por soluções simples e rápidas, mesmo quando essas soluções já demonstraram seus riscos.
A diferença é que agora, o que antes era uma aposta no novo virou um dilema conhecido. Ainda assim, parte da população segue disposta a correr o mesmo risco — não por ingenuidade, mas por esgotamento. Quando o sistema não entrega, o populismo oferece uma narrativa. E uma narrativa, quando bem contada, é poderosa.
Mas a experiência em outras democracias oferece um alerta importante: há um limite para essa ilusão. Na França, o apoio a lideranças que desafiam as instituições caiu 38 pontos desde 2016. Na Itália, a queda foi de 26 pontos no mesmo período. Quando o populismo sai do palanque e entra no governo, a retórica encontra a realidade, e nem sempre sobrevive bem ao teste.
O que vemos, portanto, é que o populismo não desaparece — ele se adapta. E continua sendo uma resposta perigosa para um problema legítimo.
A ponte de safena das instituições
Talvez o dado mais emblemático da pesquisa seja este: 58% das pessoas no mundo gostariam que as grandes decisões políticas fossem tomadas por referendos e não por representantes eleitos. Ou seja, o sistema não funciona. Melhor ‘by pass’ a todas as instituições, se for assim. Uma ponte de safena no entupimento.
E a democracia, com seus freios, pesos e negociações, vai ficando para trás — acusada de lenta, ineficaz, elitista.
O risco aqui é claro: quando a política falha em ser resposta, o populismo vira solução. Mas uma solução de superfície, que mina instituições, normaliza abusos e transforma adversários em inimigos.
A boa notícia é que, em alguns lugares, essa ilusão começa a se desfazer. O desafio é fazer isso acontecer antes que os danos se tornem irreversíveis. Porque a reconstrução democrática exige mais do que técnica: exige escuta, humildade e coragem institucional.
Se a sociedade está mesmo deteriorada — e tudo indica que sim — a saída não virá com mais rasgos. Mas com costura firme e responsável.
E aí, quem se habilita?