Agência de notícias
Publicado em 17 de agosto de 2025 às 08h52.
Era mais um dia comum, em março do ano passado, quando Paula (nome fictício), de 40 anos, ouviu da filha de 4 anos uma revelação que mudou completamente sua vida. Após dar banho na menina, a criança se queixou de dores nas partes íntimas. Ao verificar a região, a mãe notou vermelhidão e perguntou se havia acontecido alguma coisa. A resposta acendeu o primeiro sinal de alerta: “É segredo, mamãe”. Ao insistir, a menina, com vocabulário ainda limitado, apontou para partes do corpo onde o pai tinha tocado.
— Mesmo na linguagem dela, foi tudo tão claro que me deixou desnorteada. Minha alma saiu do corpo e voltou; eu não conseguia acreditar. Tanto que não tive sabedoria para continuar um diálogo assertivo, para tentar obter mais informações. Então, dei um abraço nela, disse que a protegeria e que aquilo nunca mais aconteceria — contou Paula.
Depois do choque, a mãe procurou o Conselho Tutelar e relatou o que a filha havia contado. A conselheira tutelar de Vila Isabel, Milena Salgueiro, e a assistente social Anna Carla Gonçalves fizeram os primeiros atendimentos e orientaram sobre como proteger as filhas.
— Quando uma família descobre uma situação dessas, impacta diretamente a todos, que ficam, muitas vezes, sem saber o que fazer. O conselho entra justamente para dar suporte, ouvir, explicar os direitos, indicar os passos a seguir, acionar a rede de proteção e orientar sobre onde buscar atendimento especializado. Isso dá mais segurança para a família agir rápido e proteger a criança ou o adolescente de novos riscos. É um trabalho que mistura acolhimento e informação — explica Milena.
Após o atendimento, Paula procurou a Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima (Dcav) e conseguiu uma medida protetiva para as duas filhas.
Desde que a Lei Henry Borel entrou em vigor, em 2022, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) deferiu 4.631 medidas protetivas — são ordens aplicadas pelo juiz que determinam o afastamento do agressor — para crianças e adolescentes. Desse total, 41% ocorreram apenas no ano passado, quando foram concedidas 1.913 decisões. A lei prevê, além do afastamento do agressor, assistência à vítima em centros de atendimento e até a suspensão de porte de arma de fogo para o suposto agressor.
O delegado Cristiano do Vale Maia, titular da Dcav, afirma que a lei foi fundamental para estruturar o mecanismo de proteção às vítimas de violência doméstica e familiar, principalmente quanto à medida protetiva de urgência.
— Depois que a violência é comunicada e o registro de ocorrência é feito, encaminhamos o caso imediatamente ao Poder Judiciário, já com o pedido de medida protetiva de urgência. A partir das informações coletadas, o juiz vai indeferir ou deferir a medida. Esse processo costuma levar, no máximo, 24 horas — explica.
Segundo o delegado, os casos mais frequentes envolvem maus-tratos e importunação sexual. Também há muitas ocorrências de lesão corporal e estupro de vulnerável. Em todo o Estado do Rio, foram registrados 3.923 estupros de crianças e adolescentes — quase 11 por dia, em média — em 2024, de acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP). Menores foram vítimas em 5.235 casos de lesão corporal dolosa no ano passado.
Em uma sexta-feira de abril desde ano, Carla (nome fictício) percebeu a ausência da neta Letícia (nome fictício), de 8 anos, em um evento de distribuição de ovos de chocolate, em Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio. Ao perguntar ao irmão dela, de 4 anos, sobre a menina, ele respondeu que ela estava “dodói”. Diante da insistência da avó, revelou que a mãe havia queimado a irmã e batido nela com a mangueira do botijão de gás.
Assustada, a avó foi imediatamente até a casa da filha. Ela não estava lá. O menino entrou e chamou a irmã. Após alguns minutos, Letícia apareceu na varanda com metade do rosto queimado e disse: “Não conta, vó, mas foi ela, foi ela!”. Após se refazer do choque, a avó denunciou a própria filha, que foi presa em flagrante. A polícia constatou queimaduras no rosto, no peito e no braço da criança.
A violência sofrida por Letícia, embora não seja caso isolado, foge ao padrão da maioria das ocorrências contra crianças e adolescentes, como explica a promotora Roberta Rosa, que atua junto à 1ª Vara Especializada em Crimes contra a Criança e o Adolescente (Veca).
— A prisão em flagrante nessa vara é minoria, até pela natureza doméstica dos crimes. Trabalhamos com casos resultantes de investigações. Por isso, o trabalho da polícia precisa ser rápido e bem estruturado, pois a demora pode levar a um caso extremo e terminar com a morte de uma dessas vítimas — alerta.
Durante o curso do inquérito ou do processo judicial, as autoridades podem precisar ouvir a vítima em um procedimento chamado “depoimento especial”. Essa etapa é regulamentada por lei e exige uma série de cuidados para ouvir os menores que foram vítimas ou testemunharam algum crime. Entre os principais aspectos está a previsão que elas sejam ouvidas apenas uma vez, para evitar a revitimização.
A policial civil Tatiana Lopes, de 40 anos, faz esses depoimentos desde 2020 na Dcav, na Lapa. Segundo ela, a preparação começa com a reunião de informações básicas, sem se aprofundar demais nos detalhes já apurados na investigação, para manter a maior neutralidade possível. A entrevista é feita em ambiente formal, com poucos estímulos visuais e sonoros, para evitar distrações.
— Depois de explicar para a criança que vamos conversar e que o objetivo é protegê-la, usamos o protocolo de entrevista cognitiva, que busca evitar sugestionamentos e perguntas fechadas, de modo a não induzir a resposta — relata.
Antes de abordar diretamente o motivo que levou a vítima até a delegacia, Tatiana explica que é necessário conversar sobre outros assuntos para observar a memória, a capacidade de argumentação, a coerência e a demonstração de emoções da criança.
— Só depois disso, entramos no assunto da violência sofrida. A autoria e a materialidade são mais simples de identificar, mas detalhes como onde foi, quantas vezes e em qual parte do corpo são mais complexos. Cada criança reage de um jeito: algumas choram, outras falam pouco e há aquelas que nem entendem o que aconteceu como uma violência — diz.
Paula precisou lidar exatamente com essa falta de compreensão das filhas, que acreditavam que o abuso sofrido era uma “brincadeira”.
— Para a criança, o que acontece dentro de casa é a lei. Então, se isso acontece no lar, ela vai entender como algo normal. Depois vem um trabalho para reeducar aquela criança sexualmente, para que entenda que isso não é normal. Se isso acontecer, ela precisa contar para um adulto de confiança — afirma.
Depois de ver seu mundo desmoronar, buscar forças para denunciar e encontrar equipes especializadas para cuidar das filhas, Paula percebeu como a falta de informações sobre o tema gera desamparo:
— É um assunto indigesto, que incomoda. Todo mundo acha um absurdo, mas quase ninguém quer falar sobre. É de extrema relevância que seja discutido, porque está acontecendo o tempo todo, bem debaixo do nosso nariz. A gente vê na televisão e acha que está distante, mas não está.