Policiais transportam pessoas para um hospital após a Operação Contenção na favela Vila Cruzeiro, no complexo da Penha, no Rio de Janeiro, nesta terça-feira, 28 (Mauro PIMENTEL/AFP)
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Publicado em 30 de outubro de 2025 às 15h22.
Última atualização em 30 de outubro de 2025 às 16h28.
A operação no Rio de Janeiro na terça-feira, 28, matou ao menos 121 pessoas, prendeu 81 e apreendeu 93 fuzis, e ostenta o título de mais letal no país. Mas, para entidades e pesquisadores em segurança pública, ela fez pouco em desvelar os mecanismos financeiros e logísticos das facções criminosas, que movimentam mais de centenas de bilhões de reais ao ano e, somente na capital fluminense, dominam 18,2% do território, segundo levantamento de 2024.
Especialistas mencionam estudos que apontam o crescimento das facções mesmo após todas as operações em comunidades no RJ das últimas décadas, o que comprova a ineficácia desse tipo de operação. O crime e a guerra urbana no Rio e no Brasil, ponderam, funcionam nos mesmos moldes de atividades econômicas tradicionais e têm se tornado cada vez mais sofisticados, com ramificação em diversos setores da economia, o que exige maior inteligência das forças de segurança.
O caso dos combustíveis encapsula o tamanho do desafio: apenas neste setor a estimativa é que as organizações criminosas movimentam anualmente R$ 61,5 bilhões, o equivalente a 8,7% do mercado da área, o suficiente para abastecer 500 milhões de carros por três semanas.
O dado é do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que fez um levantamento relativo a 2022 e 2023 e aponta a movimentação anual de R$ 146 bilhões no que diz respeito a apenas quatro setores: combustível (41,8%), bebidas (38,8%), extração e produção de ouro (12,4%) e tabaco (7%).
A mesma entidade também aponta que as facções criminosas brasileiras poderiam, caso exportassem toda cocaína que passa pelo Brasil, movimentar anualmente R$ 335 bilhões, cifra equivalente então a 4% do PIB do Brasil.
Em outra ponta, crimes virtuais e furtos de celulares, que têm muitas vezes relação com grupos criminosos estruturados, geraram uma receita ainda maior, de R$186 bilhões entre julho de 2023 a julho de 2024, também segundo o fórum.
Esse poderio financeiro aumenta o alcance bélico do crime no país, o que tornou a segurança pública o principal problema do Brasil, segundo pesquisas de opinião. De acordo com o instituto Quaest, a violência é apontada como principal preocupação da população para 31% dos entrevistados – no Rio de Janeiro, o dado salta para 71%.
O número se justifica: levantamento feito em 2020 pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da Universidade Federal Fluminense (UFF) em parceria com o datalab Fogo Cruzado, o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, a plataforma digital Pista News e o Disque-Denúncia afirma que há 4,4 milhões de moradores da Região Metropolitana do Rio que vivem em bairros ou regiões próximas com guerra ou convivência com traficantes e milicianos.
O efeito, naturalmente, se estende para menos competitividade econômica. Um estudo do início do ano da Confederação Nacional do Comércio (CNC), por exemplo, apontou que a violência no estado do Rio tem um impacto de R$ 11,4 bilhões na economia local, algo próximo a 1% do PIB fluminense. Um caso simbólico é o de roubo de cargas: no estado, 9 caminhões foram roubados em média por dia no ano passado, segundo levantamento da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan).
Especialistas na área apontam caminhos para enfraquecer as facções. Um deles diz respeito à ampliação das investigações sobre a rota de contrabando e produção de armas de grosso calibre.
“A população só está subjugada porque as facções têm muita arma de fogo. Ninguém controla uma comunidade com 1 kg de cocaína na mão, controla porque tem fuzil. Tira 90 fuzis de circulação em um dia e no outro já há oferta para serem repostos”, afirma o integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ex-policial federal e chefe de pesquisas científicas sobre crime organizado, Roberto Uchôa.
Um exemplo de operação nesta linha ocorreu em outubro deste ano, quando a Polícia Federal desarticulou uma rede com capacidade para produzir 3,5 mil fuzis por ano e que era responsável por abastecer facções como o Comando Vermelho, principal alvo da ação policial do RJ desta semana. Cada fuzil custa cerca de R$ 60 mil.
O chefe de inovação do Instituto Igarapé e especialista em segurança, cidades e transformação digital, Robert Muggah, afirma ser necessária uma integração internacional para reduzir o abastecimento de armas no Brasil.
“A polícia precisa tratar o tráfico internacional de armas de fogo como um crime da cadeia de suprimentos, especialmente considerando a estimativa de que 90% dos fuzis usados por facções criminosas sejam estrangeiros – e 70% deles provenientes dos Estados Unidos", diz. "Isso significa trabalhar com parceiros para auditar agentes de carga, verificar o uso final, ampliar o rastreamento e combinar apreensões com investigações financeiras para que os traficantes percam tanto a carga quanto o capital.”
A coordenadora do Geni, da UFF, Carolina Grillo, por sua vez, afirma que também é necessário apurar outros atores envolvidos e que atuam na lavagem do dinheiro do crime.
Ela afirma que substituir os pequenos traficantes e até mesmo os chefes das organizações criminosas é mais simples, enquanto a reposição dos operadores de instituições financeiras em conluio com as facções é mais difícil.
“Mesmo em posições de comando, morre um e já há uma disputa para outro assumir o lugar. Por outro lado, não há mão de obra infinita para operar fintechs com ligação com o crime organizado”, diz.
Nesse sentido, a operação de agosto que ocorreu principalmente em São Paulo e mirou o Primeiro Comando da Capital (PCC) é um bom exemplo, apontam os especialistas. Na ocasião, a Polícia Federal afirmou ter desarticulado um esquema de fraude na cadeia de combustíveis que teria movimentado R$ 140 bilhões.
A ação cumpriu ordens judiciais contra entidades do mercado financeiro formal e, de acordo com a corporação, as organizações controlavam mais de 40 fundos multimercado e imobiliários que, juntos, somavam R$ 30 bilhões. A PF afirma que o grupo criminoso comprou com esta verba 1,6 mil caminhões, quatro usinas produtoras de álcool, um terminal portuário, mais de 100 imóveis e seis fazendas.
Outra estratégia necessária para empobrecer as facções é mapear todos os serviços que rendem dinheiro para o crime, segundo Grillo. “É preciso regular, fiscalizar mercados ilegais que têm capilaridade. Estamos falando do mercado imobiliário, setor de telecomunicação que as facções usam para impor monopólio de contratação em serviços de internet e TV a cabo, transporte alternativo, oferta de gás, de água, de eletricidade, todo tipo de prática de sobretaxação que acomete a população”, diz.
Ela avalia que muitas vezes análises mais superficiais focam na questão do tráfico de drogas, de fato um mercado rentável, mas que o problema é muito maior. “Os grupos criminosos não dependem só da venda de produtos proibidos e do contrabando. É necessário fiscalizar e haver uma oferta legal de serviços como forma de atacar a base econômica das facções”, afirma.
A diretora de projetos do Instituto Sou da Paz, Natália Pollachi, vê uma disputa política por trás das operações e que isso mais atrapalha do que ajuda. O que é necessário, de acordo com a diretora, é uma maior interação entre os entes federativos. Ela também defende que o melhor caminho é a asfixia financeira das facções e diz que o governo federal pode ter uma atuação importante nesta área.
“A União pode investigar o fluxo de armas, fronteiras, fortalecer o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Mas o governo estadual também tem muita responsabilidade nessa conta”, diz. Ela classifica como “inadmissível” uma operação matar mais de 100 pessoas. “Independentemente do resultado de presos e armas apreendidas, não podemos deixar que uma ação que deixou essa quantidade de mortos seja chamada de um sucesso”, afirma.
Uchôa, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, defende como solução uma investigação que vá além dos traficantes. Ele diz que a mira dos investigadores deve se voltar para “quem recebe financiamento de campanha dessas organizações, quem recebe dinheiro deles em delegacia, quem vende decisão judicial, que vaza informação da polícia”.
“Não estou falando só de tráfico: prostituição, desmanche de carro e todas as ramificações. Fala-se muito em asfixiar financeiramente o crime, mas ninguém fala de combater a infiltração no Poder Público”, afirma.