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'Alunos estão pedindo dinheiro de volta', diz representante das autoescolas sobre mudanças na CNH

Ygor Valença, presidente da Feneauto, diz que as autoescolas não são contra a modernização e o barateamento do processo, mas reclama que as empresas do setor não foram procuradas

Autoescolas: representante diz que não foi procurado pelo governo para discutir novo modelo (Sindaautoescola/Divulgação)

Autoescolas: representante diz que não foi procurado pelo governo para discutir novo modelo (Sindaautoescola/Divulgação)

André Martins
André Martins

Repórter de Brasil e Economia

Publicado em 14 de agosto de 2025 às 14h37.

Última atualização em 14 de agosto de 2025 às 14h44.

A proposta do governo de acabar com a obrigatoriedade das aulas de autoescola no processo de emissão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) gerou "espanto" nas empresas que atuam no setor e já está causando impacto financeiro.

Em entrevista à EXAME, Ygor Valença, presidente da Federação Nacional das Autoescolas e Centros de Formação de Condutores (Feneauto), afirma que as pessoas que se matricularam para iniciar o processo de obtenção da carteira de motorista estão pedindo o cancelamento.

"Já estamos sentindo os impactos dessa proposta, pois muitos alunos que se matricularam, mas não começaram as aulas, estão pedindo o dinheiro de volta, devido à incerteza", diz.

A proposta do governo torna facultativas as aulas da autoescola. As provas escrita e prática serão mantidas.

A principal justificativa da gestão petista para a medida é a redução de custos e a ampliação do acesso à habilitação para pessoas de baixa renda e mulheres.

O governo diz que o preço pode cair até 80% com a desregulamentação. O custo médio para obter uma habilitação no país é de R$ 3.215,64, segundo dados do Senatran.

Valença diz que as autoescolas não são contra a modernização e o barateamento do processo, mas reclama que as empresas do setor não foram procuradas e que o modelo atual é definido pelo próprio governo.

"O governo está propondo um modelo novo, como se o atual tivesse falhado, e nós estamos preocupados, porque essa mudança pode afetar a estrutura de 15 mil autoescolas no Brasil, que empregam cerca de 300 mil pessoas", afirma.

O representante do setor diz tenta articular com o Congresso Nacional para a manutenção das autoescolas. A Frente Parlamentar em Defesa da Educação para o Trânsito e da Formação de Condutores de Veículos Automotores foi oficializada nesta quinta-feira.

Uma manifestação reuniu cerca de 400 carros de autoescolas e 1.000 instrutores em Brasília contra a medida na última quarta-feira, 13.

"Estamos organizando uma frente parlamentar com mais de 220 assinaturas e esperamos que, com o retorno das atividades no Congresso, possamos estabelecer esse diálogo. O setor quer desburocratizar e modernizar, mas isso precisa ser feito dentro das regras que o governo estabeleceu", afirma.

Ygor Valença, presidente da Federação Nacional das Autoescolas e Centros de Formação de Condutores (Feneauto)

Leia a entrevista completa com Ygor Valença, presidente da Federação Nacional das Autoescolas e Centros de Formação de Condutores (Feneauto)

O que você pode nos dizer sobre o posicionamento da Feneauto em relação à proposta do governo sobre a CNH?

A gente vê isso com certo espanto. Nosso serviço é público delegado, ou seja, quem dita as regras do processo de habilitação é o Ministério dos Transportes. O ministro também preside o Contran, que é o órgão normativo que estabelece essas regras, como, por exemplo, a resolução de 2018 que define como devemos operar. Ela estabelece a quantidade de veículos e instrutores, a estrutura das salas de aula, os requisitos de segurança, entre outras coisas. Portanto, toda a nossa estrutura é regulada por essa resolução. O que nos causa espanto é que, em nenhum momento, fomos consultados para discutir uma proposta de desburocratização ou modernização do setor.

Vocês foram pegos de surpresa com essa proposta, certo? Quais são as suas preocupações em relação a ela?

Exatamente, fomos pegos de surpresa. O governo está propondo um modelo novo, como se o atual tivesse falhado, e nós estamos preocupados, porque essa mudança pode afetar a estrutura de 15.000 autoescolas no Brasil, que empregam cerca de 300.000 pessoas. Não estamos falando de defesa de mercado, mas de um setor que tem seguido regras por 27 anos. Essa mudança abrupta pode criar insegurança para os trabalhadores e prejudicar a formação dos motoristas, principalmente por questões de segurança no trânsito. E a gente também está preocupado com o impacto que isso pode ter no SUS. Se essa mudança gerar mais acidentes no trânsito, quem vai pagar a conta será o SUS e a população.

A Federação não se opõem à modernização, mas à forma como ela está sendo proposta? Qual seria o meio-termo?

A gente não está buscando um meio-termo, estamos buscando uma solução que seja boa para todos. Não houve um diálogo real com o governo, e isso nos preocupa. Se o governo está propondo flexibilização, como a aula online, por exemplo, que é uma das propostas, precisamos de uma regulamentação clara para isso. Não podemos simplesmente começar a dar aulas online sem uma resolução que diga que isso é permitido. A autoescola é regida por uma resolução, e flexibilizar a estrutura sem um novo regulamento gera insegurança.

E como vocês veem a articulação com o Congresso? Já conseguiram se reunir com o ministro ou o responsável?

Tentamos. Mas durante o recesso, tanto o Senado quanto o Congresso estavam obstruídos, e a gente não conseguiu se aprofundar no diálogo. Porém, estamos organizando uma frente parlamentar com mais de 220 assinaturas, e esperamos que com o retorno das atividades no Congresso, possamos estabelecer esse diálogo. O setor quer desburocratizar e modernizar, mas isso precisa ser feito dentro das regras que o governo estabeleceu.

E em relação à segurança no trânsito, que é uma das principais defesas da Feneauto, o governo fala muito sobre o combate a "máfias" e sobre a importância da segurança. Como o senhor vê isso?

O exame não é responsabilidade das autoescolas, é responsabilidade do Detran. Se existe alguma máfia, o governo deve lidar diretamente com o Detran, e não com as autoescolas. As autoescolas apenas colocam seus veículos para o exame. O que nos preocupa é a falta de responsabilidade e fiscalização com relação a novos modelos de formação de condutores. Se os instrutores se tornarem autônomos, sem regulamentação, como será possível garantir que a formação de motoristas seja segura? A proposta não responde a essas questões e nos deixa bastante apreensivos.

O governo também aponta que 18 milhões de pessoas dirigem sem CNH, e isso justificaria a necessidade de mudança no modelo atual. O que você pensa sobre essa justificativa?

Eu refuto essa justificativa. O fato de uma pessoa ser proprietária de um veículo não significa que ela esteja dirigindo sem habilitação. A falha do sistema é mais uma questão de fiscalização do que da formação em si. Se há 20 milhões de pessoas dirigindo sem CNH, isso é uma falha de fiscalização. O governo precisa investir mais na fiscalização, não na flexibilização das autoescolas, que já seguem regras claras.

E qual é a sua opinião sobre a flexibilização das regras para diminuir os custos das autoescolas, como proposto pelo governo?

Flexibilizar as regras pode ser uma boa ideia, desde que isso seja feito de maneira responsável, para garantir a segurança no trânsito e a qualidade na formação dos motoristas. A questão é que não estamos sendo consultados nesse processo. Estamos sendo substituídos por um modelo que não foi discutido com os envolvidos no setor, o que gera insegurança para todos. Além disso, as autoescolas pequenas em cidades menores já têm dificuldades em se credenciar, devido às exigências mínimas estabelecidas por lei.

Caso a proposta avance, como será o dia seguinte para as autoescolas? 

Vejo isso com bastante preocupação. Se o novo modelo for implementado, pode haver uma demissão em massa nas autoescolas. Já estamos sentindo os impactos dessa proposta, pois muitos alunos que se matricularam, mas não começaram as aulas, estão pedindo o dinheiro de volta, devido à incerteza. As autoescolas são, em sua maioria, pequenas empresas, muitas delas familiares. Se isso continuar, teremos um impacto devastador no setor.

Como a Feneauto vê a falta de diálogo com o governo? E o que vocês esperam daqui para frente?

O que mais nos preocupa é a falta de diálogo. Não estamos contra mudanças, mas queremos que essas mudanças sejam discutidas de maneira transparente, com a participação de todos os envolvidos. A Feneauto está mobilizando uma frente parlamentar para tentar abrir esse diálogo no Congresso, porque o que está em jogo não é apenas o futuro das autoescolas, mas a segurança no trânsito e a formação de motoristas. Queremos encontrar uma solução que beneficie a sociedade como um todo, mas para isso, é preciso que o governo ouça as nossas preocupações e se envolva em um debate mais amplo.

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